Oriente Médio e a Nova Geopolítica Mundial

Professor Lejeune - 20-07-2015 4112 Visualizações

Apenas para registro, não trataremos neste artigo, das especificidades do que vem ocorrendo seja no Egito e Tunísia, em processos mudancistas mais avançados, seja na Líbia, Síria, Iêmen e Bahrein, por se tratar de uma revista bimestral. Quem são os árabes hoje? Também não é foco deste artigo contar a história dos povos árabes. É uma civilização com milhares de anos de existência, que vivem na Península Arábica e na região da Palestina e Babilônia. Seu legado é imenso. Pelo menos desde o ano de 630, os árabes construíram um império, decorrente da força da religião que Mohamed fundou, que é o Islã. Os árabes em todo o mundo encontram-se espalhados por 21 países, mais a Palestina (ocupado por Israel) e a República do Sarauí (ocupado pelo Marrocos). A Liga dos Estados Árabes, fundada em 1945 no Cairo, aceita a Palestina como membro, de forma que possuem 22 estados-membros1. São oito monarquias absolutistas (ou petromonarquias) e 13 “repúblicas” (de fachada, pois na prática são ditaduras – ver Quadro I). As potências vencedoras da 1ª Guerra Mundial em 1918, a Inglaterra e a França, colonizaram praticamente todos os países da região do OM e do Norte da África (conhecido como Maghreb). Interessante observar como as fronteiras entre esses países são retas como se divididas tivessem sido por riscos feitos com lápis no mapa da região. As “independências”, por assim dizer, iniciaram-se em 1922 (Egito) e concluíram-se em 1977 (Djibuti). Os árabes são 347 milhões em todo o mundo ou 5,18% da população mundial. A soma de todos os PIBs de seus países soma a US$2,477 trilhões de dólares, ou apenas 4% de todo o PIB mundial. No entanto, com relação às reservas de petróleo, o país árabe detém 685,11 bilhões de barris ou exatos 50,81% das reservas mundiais (ver Quadro II). Por fim, com relação á produção diária de óleo. Esses países produzem todos os dias 22,967 milhões de barris, o que significa 27,26% da produção total no mundo, que é de 84,24 milhões de barris/dia (b/d). São dados atualizados da questões energética e são apresentados porque o conflito existente no OM guarda uma relação direta com a estratégia de controle dessas fontes de energia (não renovável). Sabe-se que não há como o mundo substituir a sua dependência do petróleo e gás natural pelos próximos 30 ou mesmo 50 anos. Os Estados Unidos consomem todos os dias 19,497 milhões de b/d, mas produzem apenas 7,27 milhões de barris, ou 37,42%. Dessa forma, precisam importar todos os dias 12,22 milhões de barris, que vêm em boa parte de países árabes. Apesar de toda a propaganda neoliberal em todo o mundo, as maiores empresas petrolíferas – as dez mais – seguem sendo estatais2. Os maiores países ocidentais não são produtores de petróleo. Os casos mais marcantes são o do Japão, que precisa todos os dias de 5,57 milhões de b/d, a Alemanha 2,677 milhões de b/d, a Coreia (do Sul) 2,061 milhões de b/d, a França 2,06 milhões de b/d, a Itália 1,874 milhões e a Espanha com 1,537 milhões de b/d3. Os maiores exportadores de petróleo de petróleo do mundo, com valores em milhões de b/d, pela ordem, são: Arábia Saudita (8,651), seguida da Rússia (6,65), Noruega (2,542), Irã (2,519), Emirados Árabes (2,515), Venezuela (2,203), Kuwait (2,146), Argélia (1,847), Líbia (1,525) e Iraque (com 1,438)4. Por esses dados, vê-se que os países árabes exportam todos os dias 18,122 milhões de b/d. Se agregarmos o Irã, país persa com linha política antiimperialista, esse número eleva-se para 20,641 milhões de b/d. Daí a estratégia imperialista de controle da região. As maiores empresas petrolíferas privadas são a ExxonMobil (EUA), a ChevronTexaco (EUA), a Shell (Holanda), British Petroleum (Inglaterra), a Total (França) e a ConnocoPhilips. Todas elas juntas empregam 514 mil trabalhadores e faturam por ano 1,697 trilhões de dólares. No entanto, respondem por apenas 10% de toda a reserva de petróleo do mundo. Por fim, é relevante destacar a questão do Islã. Hoje existem no mundo 1,6 bilhões de muçulmanos praticantes (dos quais 1,4 bilhões são sunitas e 0,2 bilhões são xiitas). Não devemos confundir “muçulmanos” com árabes. Nem todo muçulmano é árabe e nem todo árabe é muçulmano. Aliás, apenas 8% dos árabes não são muçulmanos (27,76 milhões; geralmente cristãos cooptas ou ortodoxos; católicos são residuais). Em termos mundiais, apenas 19,95% dos muçulmanos no mundo todo são árabes (um em cada cinco). A história recente dos levantes Certa vez, perguntaram para Chu En Lai, um dos líderes da Revolução Chinesa de 1949, o que ele achava da Revolução Francesa de 1789. Tal pergunta foi feita nos anos 1970. A sua resposta, como bom chinês, foi “ainda é cedo para dizer”5. Danton, líder dessa revolução, dizia que “precisamos de audácia, mais audácia e sempre audácia”. É verdade. Ele foi guilhotinado e quem o guilhotinou também morreu dessa forma. São as idas e vindas de uma revolução. Depois disso veio Napoleão (1800), a Restauração (1814), a Revolução de 1848 (incendiou parte da Europa), a Comuna de Paris (em 1871). Com isso, precavemos os leitores de que é mesmo muito prematuro para formarmos uma opinião mais completa do processo revolucionário em curso no mundo árabe. Os levantes populares em curso no OM tiveram seu início, de forma inesperada, com o caso do jovem de 26 anos Mohammed Boazizi, vendedor de frutas ambulante com formação universitária. Inconformado com o fato da polícia corrupta ter-lhe tomado seu carrinho, seu ganha pão, por ele não aceitar pagar propinas, decidiu imolar-se em frente ao palácio presidencial onde governava desde 1988, o ditador Zine Abdine Ben Ali. Isso ocorreu em 15 de dezembro de 2010. A partir desse momento, até a queda do regime em 16 de janeiro, transcorreram 27 dias de grandes manifestações. A polícia atacou com fúria a multidão diariamente, que, de peito aberto, a enfrentou. O ditador – chamado durante todos esses anos de “presidente” por ser amigo de Washington – fugiu em debelada com sua família e, dizem, com mais de cem malas carregadas de ouro e dólares. Em todos os 22 países árabes temos a presença de governos longevos. Ou são monarquias absolutistas ou são ditaduras disfarçadas de democracias, onde a cada cinco ou seis anos, fazem-se “eleições” farsescas, fraudulentas para tentar legitimar ditadores amigos dos Estados Unidos, para garantir ao império norte-americano a defesa de seus interesses nessa estratégica região, em especial a garantia do fluxo de petróleo para a América, a passagem dos seus navios petroleiros e cargueiros pelo Canal de Suez e pelo Estreito de Ormutz no Golfo. Há também a questão estratégica da defesa incondicional pelos EUA, do Estado de Israel. “No caso da política de Obama para o OM, são cegos guiando cego e cegos aconselhando cego no salão oval da Casa Branca”6, em uma clara alusão a Bill Daley, Ben Rhodes, Tony Blinken, Denis McDorough, John Brennan e Robert Cardillo, assessores e conselheiros de diversos cargos de Obama, todos, indistintamente, militantes fanáticos pró-Israel e à serviço do lobbyie judaico. Como diz Jean Pierre Lehman, não há “regionalização” no OM e nem no Norte da África. Segundo dados do PNUD de 2001, há três carências básicas no mundo árabe: de liberdade, de conhecimento e de poder feminino. No caso cultural, dados estarrecedores mostram que na década de 1960, editavam-se pelo menos três mil títulos apenas no Egito e no ano passado, apenas 300 foram publicados7. Acerta Ury Avnery, um dos maiores escritores e intelectuais israelense, quando diz “estamos passando por um evento geológico. Um terremoto de vastíssimas dimensões, que esta mudando a paisagem no OM. Montanhas viram vales, ilhas emergem do mar e vulcões cobrem a terra de lava”8. Como diz o professor da Universidade Americana de Beirute, Ahmad Massouli, Obama comete erros e mais erros na sua política externa para a região. Não consegue sequer barrar os assentamentos judaicos na Cisjordânia (os EUA vetaram em 18 de fevereiro o congelamento no CS/ONU) e vai se antagonizando com mais de 1,6 bilhões de muçulmanos de todo o mundo. Ele arrisca dizer que vamos presenciar um novo mundo árabe, revolucionário e que não será mais submisso aos interesses norte-americanos. Os EUA só conseguirão criar boas relações com o mundo árabe quando a questão palestina estiver completamente resolvida9. Sem exceção, os governos árabes pró-americanos têm como características: 1. Sempre combateram o comunismo desde a chamada guerra fria; 2. Desde 1979, combateram o Irã de Khomeini; 3. Tudo fazem para liquidar o islã político, a que chamam de “fundamentalista”; 4. Sempre adotaram posições contrárias aos movimentos sociais, em especial contra os sindicatos; 5. Atuaram sempre contra as resistências libanesa e palestina10. Foi nesse caldeirão que as rebeliões e a revolução árabe teve início. Regra geral, as grandes reivindicações, praticamente unânimes em todos os países são as seguintes: 1. Revogação do Estado de Emergência; 2. Libertação de todos os presos políticos; 3. Liberdade de organização partidária; 4. Liberdade sindical e de organização social; 5. Liberdade da imprensa e de expressão; 6. Eleições livres para Presidente e para o Parlamento; 7. Convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte Livre, Democrática e Soberana. Não esta claro se tais avanços serão possíveis, em especial na Tunísia e no Egito, que foram os primeiros a derrubar seus governantes. “Para impor mudança tão ampla, o movimento de massas egípcio teria que quebrar a espinha dorsal do regime, que é o seu exército”11. E, claro, não há a menor condição de que isso ocorra. A tomada da “Bastilha” egípcia não aconteceu. Pelo menos não por enquanto. “O espírito do governo de Hosni Mubarak, a essência de seu regime, seus métodos estão longe de acabar”12. Um dos maiores sociólogos da atualidade conclui: “Os EUA, aflitos para ficar ao lado dos vencedores, mas sem saber exatamente quais serão e sem querer perder o apoio dos ditadores e monarcas absolutos de que ainda julgam precisar, fazem do Irã e da Turquia os dois maiores ganhadores com o processo revolucionário que agita os países árabes”13. Sendo assim, “é possível que estejamos testemunhando o nascimento de um novo tipo de política revolucionária que não é definido pelos protestos maciços das massas nas ruas, mas pela maneira como os participantes se reuniram”14. A questão central em todo o OM não é e nunca foi religioso. Claro que o componente religioso pode existir, mas os conflitos são essencialmente políticos. São disputas territoriais, coloniais, de recursos energéticos e hídricos. Nesse sentido, Robert Fisk menciona “se são revoltas seculares, porque só se falam das religiões?”15. Até esse jornalista inglês fica espantado com isso. Não há dúvidas que isso faz parte de uma estratégia midiática para tentar mostrar o pano de fundo dos conflitos no OM como religioso, para enganar as massas e, mais do que isso, indispor bilhões de pessoas contra uma das maiores religiões da terra que é o Islã. Observações finais Evita-se de chamar esta parte final do artigo de “conclusões”, tamanha ainda a fragilidade das informações e amadurecimento sobre os rumos que as coisas estão tomando no OM. Por isso, apresenta-se as primeiras observações, com base em um quase consenso, por assim dizer, entre diversos e importantes analistas e estudiosos do OM. 1. Obama perde nesse processo. Seu discurso do Cairo de julho de 2009, estendendo a mão para os muçulmanos provou-se uma farsa. Não deu passo algum para respeitar os muçulmanos e os árabes em geral. Insiste em classificar os Partidos políticos Hamas e o Hezbolláh como “terroristas”. Vai se antagonizando com mais de 1,6 bilhões de muçulmanos de todo o mundo. 2. Os novos governos árabes não serão tão subservientes com os norte-americanos. O que tanto os Estados Unidos sempre tiveram pavor, poderá acontecer, que é a participação com destaque da Irmandade Muçulmana nos governos árabes. Os países tendem a se afastar da órbita da OTAN, da União Europeia e mesmo dos Estados Unidos. 3. Israel poderá sair derrotado. Perdeu seu discurso de que o maior inimigo é o Irã, que este precisaria ser derrotado e bombardeado e seu programa nuclear visa a construção da bomba atômica. Terá que voltar à discussão do Estado Palestino. 4. Um novo Oriente Médio será construído. Deverá crescer a democracia, os partidos terão maiores liberdades, bem como a imprensa. Eleições gerais devem ocorrer em curto prazo no Egito e na Tunísia. O OM nunca mais será o mesmo depois desse imenso tremor político ocorrido. 5. O islã não será a solução. Não veremos um Egito, uma Tunísia ou qualquer outro país árabe como repúblicas islâmicas. Os países seguirão sendo laicos em toda a região, tal qual o Iraque e a Síria. 6. O Irã cresce no OM. Por razões diversas, mas em especial por sempre ter apoiado a causa palestina e todos os movimentos revolucionários antiamericanos na região. Ainda pelo fato de que vem enfrentando, quase que sozinho, o império norte-americano na sua defesa pela soberania, independência nacional e pela condução de seu programa nuclear para fins pacíficos. 7. Crescerá o nacionalismo árabe. Fundado por Gamal Abdel Nasser poderá jogar papel preponderante. Esse nacionalismo defende a soberania e a independência dos países árabes, respeito aos direitos de seu povo, solidariedade ao povo palestino. A esquerda poderá crescer. 8. Modelo neoliberal em xeque. Difícil que os rumos da revolução árabe substitua o modelo capitalista pelo socialismo. No entanto, encontra-se em xeque o modelo de capitalismo financeiro denominado neoliberal. 9. Mitos e “teorias” que caíram por terra. Pelo menos dois. Que as redes sociais da Internet e os celulares foram os responsáveis pela revolução árabe. Apenas 20% da população egípcia têm acesso à Internet (em outros países, ainda menos) e apenas um terço possui celulares. Que não houve líderes e o processo foi espontâneo. É diferente não aparecerem do que não terem lideranças. Quanto às “teorias”, Pelo menos duas. A de Francis Fukuyama (O Fim da história). E de Samuel Huntington (Choque de civilizações). A de Fukuyama já estava desmoralizada há uma década. Agora se enterra de vez a de Huntington. 10. Crise e declínio dos Estados Unidos. Os EUA sofrem maior aprofundamento e desestabilização em seu processo de declínio de sua posição hegemônica no sistema de relações internacionais com a presente Revolução Árabe, que tem sentido democrático, popular e antiimperialista. De uma coisa temos certeza: a democracia se constroi pela soberania de um povo. Os EUA passaram anos afirmando que levariam a “democracia” para o OM. “Durante nove anos os EUA forçaram uma porta (democracia no OM), que só se abre para fora. E mais. Essa porta só se abre por vontade própria. Os acontecimentos das últimas semanas demonstraram com clareza que não apenas partes importantes do OM estão prontas para a mudança, mas também esse impulso vem de dentro”16. Cem por cento de acordo.