Para onde vai a Turquia de Erdogan?

Verônica Lugarini - 30-09-2018 1871 Visualizações

Lejeune Mirhan*

Vamos falar neste artigo sobre a Turquia. Em nosso conceito de Oriente Médio expandido, onde estão todos os países árabes, incluindo os do Norte da África, nós incluímos ainda o Irã, que é um país persa e a Turquia. E não se pode confundir, jamais, esses três povos distintos. A Turquia fica na Eurásia ou em região que alguns geógrafos chamam de “euroasiática”. É país estratégico, como veremos, pela imensa base militar da OTAN chamada Incirlik. Por fim, é governada pela mesma pessoa – seja como primeiro ministro ou presidente – já há pelo menos 15 anos, tendo ganhado um mandato presidencial que o manterá no poder até pelo menos 2022.

Uma breve história da Turquia

O nome “Turquia” quer dizer “a terra dos turcos” na linguagem turca. Sua origem vem do império Otomano, de orientação islâmica, que surge na Anatólia a partir do século XIII. Ao expandirem seu império à época, acabaram cruzando as fronteiras europeias e conquistaram grande parte da região dos Balcãs, quando derrotaram o império bizantino (em alusão ao império romano do Oriente, cuja capital ficava em Bizâncio, que se chamava Constantinopla, hoje Istambul na Turquia; o nome Constantinopla vem de 324 quando o Imperador Constantino a conquistou).

Já completamente islamizados, os turcos (que pertencem à etnia turca) conquistaram Constantinopla em 1453, quando praticamente termina o Império Romano do Oriente. Aqui é importante registrar que desde o início do Império Islâmico, a etnia dos árabes comandava o império. Assim, o Império, que era também árabe, virou otomano. Mas, seguiu sendo islâmico, ainda que com outra orientação. Essa era uma região que sofreu muitas ocupações, da mesma forma que a Palestina sofrera. Ali passaram os impérios gregos, macedônio, romano e islâmico.

No período que compreende a ocorrência da 1ª Guerra Mundial (1914-1918), o Império Otomano integrava a chamada Tríplice Aliança, junto com a Alemanha e o Império Austro-Húngaro. Estes deflagraram uma guerra contra a chamada Tríplice Entènte, integrada pela Inglaterra, França e apoiada pela Rússia czarista. No entanto, o que conhecemos hoje como Turquia propriamente, é mais recente. Sua fundação ocorreu em 29 de outubro de 1923, quando foi proclamada por Moustafa Kemal, mais conhecido como Ataturk (que em turco que dizer “pai dos turcos”).

A localização geográfica da Turquia é estratégica, pois ela separa a Europa de toda a Ásia (recomendo aos que gostam de cinema o filme de David Lean, chamado Lawrence da Arábia, que conta a história de T. E. Lawrence, agente da inteligência inglesa que é enviado ao Oriente Médio para articular a entrada dos árabes na guerra contra o Império Otomano, em troca da independência dos países árabes, que não ocorreu por traição da Inglaterra... mas, isso é outro tema).

A Turquia Moderna

Quando dizemos que a Turquia atual em nada tem a ver com o Império Otomano é porque quando esse império começa a se desmoronar e é finalmente dissolvido em 10 de agosto de 1920, a partir do Tratado de Sévres, assinado pelos vencedores da 1ª Guerra Mundial. Aqui estamos nos referindo a um conjunto de 40 países que vão surgir após o seu fim.

A dissolução do Império foi gradual e não dependeu apenas do final da Guerra. Ele contou com a participação e da resistência dos chamados “Jovens Turcos”, que fizeram uma revolução em 3 de julho de 1908. Contribuiu para isso ainda a Revolta Árabe de 1916. E ainda mais diversos massacres perpetrados pelo império Otomano, em especial em 1915 dos Armênios. Mas houve também os massacres e perseguições do gregos cristãos, dos arameus (syriannes), dos assírios e tantos outros. Agindo como todos os impérios em decadência agem, os Otomanos fizeram barbaridades que colocaram o mundo contra eles. Com esse desmoronamento do Império, os vencedores da 1ª Guerra ameaçam tomar o espólio imperial. Eles ocupam Constantinopla e os gregos Esmirna. A partir daí, em maio de 1919, surge o Movimento Nacional Turco, quando se deflagra o que se chamou de guerra da independência.

O sultanato turco foi abolido em 1º de novembro de 1923 (seu último sultão foi Mehmet I) e o califado foi abolido em 3 de março de 1924. Foi apenas com o tratado de Laussane (cidade suíça), assinado pelos vencedores da 1ª Guerra em 24 de julho de 1923 é que a Turquia será reconhecida (a sua Assembleia Nacional tem a data de 29 de outubro de 1923 como de sua constituição e independência final). Quem emerge como seu grande líder será Ataturk, que governará o país até 10 de novembro de 1938.

É preciso registrar aqui os grandes êxodos populacionais já conhecidos. Milhões de pessoas de etnias não turcas começam a sair do Império Otomano, muito antes de seu fim. Calcula-se que dois milhões de cristãos ortodoxos deixaram a região em função das perseguições que sofreram, entre 1900 e 1920. Uma parte desses cristãos, denominados de syriannes, migrou para o Brasil (estes eram descendentes do povo arameu/caldeu e falavam, além do árabe, o aramaico). Mesmo os que vieram de outras regiões do Oriente Médio até o final do império Otomano, vinham com o passaporte turco e por isso a confusão de chamar de turco os árabes.

Ataturk, de fato, modernizou a Turquia a seu modo. Queria livrar-se de toda a herança dos otomanos e de seu sangrento império. A mais importante medida foi a laicização do Estado turco. A religião foi completamente separada do Estado, ainda que a população turca seja muçulmana em índices que beiram a 100%. Ataturk impôs a mudança da escrita, abolindo a grafia siríaca e impondo a latina com adaptações de sinais e acentos. Estabeleceu a igualdade entre homens e mulheres (essa foi medida positiva). E, aboliu todas as escolas islâmicas no país.

Após o final da 2ª Guerra Mundial, em 1945 e com a criação da chamada “cortina de ferro” e com a chamada Guerra Fria, a Turquia vai se aproximando do campo dos Estados Unidos e da Europa, de forma que em 1952 ela ingressa na OTAN, a Aliança militar Atlântica para conter a expansão e avanço da influência da União Soviética. Não só ingressa na OTAN, como autoriza a construção pelos EUA da maior das suas bases no exterior, que é chamada de Incirlik, onde atuam mais de cinco mil militares e dezenas de aviões dos mais modernos ficam permanentemente estacionados, como que a ameaçar a Rússia atual e todo o Oriente Médio. Fala-se que nessa base existam cem mísseis com ogivas nucleares.

A Turquia sempre viveu instabilidades políticas e mesmo ditaduras cruéis e sanguinárias. Golpes de estado de caráter militar ocorreram nos anos de 1960, 1971, 1980 e 1997, sem falar o mais recente em 15 de julho de 2016 (pouco depois da derrubada da presidente Dilma Roussef aqui no brasil por um golpe parlamentar, apoiado pelo poder judiciário e pela mídia). A reação do governo Erdogan foi fortíssima. O mais respeitado jornal inglês, o The Independent fala em 145 mil prisões e 134 mil demissões de servidores. Outro jornal importante da própria Turquia, o Hurriyet, menciona quase 10 mil militares presos, mais de dois mil juízes e promotores demitidos e também presos. Um verdadeiro expurgo.

Esses golpes na Turquia ocorrem pelo fato que, quando Kemal Ataturk montou e estruturou a Turquia moderna, ele criou uma espécie de Tribunal Constitucional que era quem zelava para que a Turquia fosse sempre como ele a deixou, ou seja, religião separada do Estado. E designou o exército como uma espécie de guardião desse procedimento. Dizem os especialistas que sempre que os militares percebem que o país estaría voltando a se islamizar, eles interviriam diretamente. Aliás, foi o mesmo Tribunal, apoiado pelo exército, que vem observando de perto a vida política de Erdogan e de seu Partido, o AKP – Partido para a Justiça e o Desenvolvimento. Este já teve muitos militantes proibidos de exercer a vida pública por querer misturar atividade política com a religiosa.

Podemos dizer que o grande sonho dessa Turquia moderna, que Erdogan encara muito bem, é ingressar na União Europeia. Pessoalmente, duvido muito que isso venha a ocorrer um dia. Até pelos preconceitos que os europeus têm contra o país, que eles consideram asiático.

A era Erdogan

A Turquia é uma República parlamentarista, com presidente eleito e com amplos poderes, pelo voto direto. Um modelo mais ou menos parecido com o francês, onde existe um primeiro ministro, mas que cuida de tarefas específicas de governar e administrar a máquina pública federal. As pessoas quase nem se lembram quem é o primeiro ministro tanto da Turquia quanto da França, pois seus primeiros ministros não são figuras públicas fortes e nem eleitos diretamente pelo povo, mas indicados pelo próprio presidente. O presidente é o chefe das forças armadas e cuida da política externa e da segurança.

O Partido a que Erdogan pertence é conservador. Nada tem de progressista ou esquerdista. Em muitos aspectos, em especial na economia, é neoliberal. Analistas internacionais falam de um partido “moderadamente islâmico”. Mas, em vários casos e fatos, o governo de Erdogan, seja quando ele foi primeiro ministro, seja como presidente, vem dando demonstrações de aumentar paulatinamente a islamização do país. Houve momentos inclusive de tensão entre ele e as forças armadas e o Tribunal Constitucional. Erdogan tentou derrubar a proibição do uso do veu islâmico, mas recuou.

O projeto de Erdogan deve ultrapassar a 20 anos de poder. Ele venceu as eleições para primeiro ministro em 2003 e governos até 2014 nessa condição. Depois candidatou-se á presidente em 2014, sendo eleito no primeiro turno e se recandidatou-se novamente em 2018, também eleito no primeiro turno. Assim, ele está garantido até 2022, ou seja, praticamente 20 anos.

A Turquia tem hoje em torno de 75 milhões de habitante, a mesma população do Irã (perde em tamanho apenas para o Egito com seus 92 milhões, sendo o maior país do chamado Oriente Médio expandido). O parlamento turco tem 550 deputados (um para cada 136 mil cidadãos; no Brasil essa proporção é de um para cada 403 mil cidadãos). Na Turquia existem 50 partidos políticos legalizados (enquanto no Brasil são só 35 e muita gente fica reclamando do “excesso” de partidos).

Erdogan e o novo Califado

Não é de hoje que Erdogan alimenta o desejo de se tornar um novo Califa ou Sultão. Como muçulmano sunita, ele acaba sendo adepto de correntes no islamismo que pregam a volta desse califado. Por isso faz sentido que ele tenha apoiado quase que abertamente o chamado “Estado Islâmico” (que não é nem estado, nem muito menos é islâmico). São terroristas financiados pela Arábia Saudita que tem por objetivo eliminar muçulmanos xiitas e cristãos, além de outras correntes. Esses mercenários e terroristas chegaram a ocupar uma grande região entre as fronteiras sírias e iraquianas. Hoje encontram-se em seu final de vida, já que vem sendo derrotados pelo exército árabe da Síria, com seus aliados do Irã, Líbano e mesmo do Iraque, apoiados pelos guerrilheiros do Hezbolláh libanês.

A raiz desse pensamento da volta do Califado vem de um grupo chamado Fraternidade Muçulmana, que é muito forte no Egito e Erdogan é um dos seus adeptos mais famosos. Essa organização, que mistura política e religião – por isso chamamos de Islã político – foi fundada em 1928 por dois egípcios, de forma que lá no Egito eles são muito fortes (chegaram a eleger o presidente Mohammad Mursi em 2011, mas foi derrubado tempos depois). Seus dois fundadores são Hassan al-Banna e Sayed Qutb. Essa organização atua em mais de 70 países. Seu lema pode ser traduzido dessa forma: "Allah é o nosso objetivo, Mohammad é o nosso líder, o Corão é a nossa lei e a jihad é o nosso caminho. Morrer no caminho de Allah é nossa maior esperança".

Por esses dizeres é possível observar o quanto radical esses muçulmanos são. Na prática, eles acabam sendo defensores de um estado teocrático, quando dizem que o Corão (livro sagrado dos muçulmanos) deve ser a lei das pessoas que vivem nos países por eles governados. Eles pregam um tipo de islamismo radical e fundamentalista, onde rechaçam toda e qualquer influência ocidental. As organizações mais ligadas à Fraternidade (ou Irmandade) são a Al Qaeda, organização terrorista fundada por Osama Bin Laden no Afeganistão e pelo Hamas, organização da resistência islâmica palestina que atua na Faixa de Gaza.

Erdogan mantém uma política externa muito dúbia. Ora se aproxima de Israel, ora se afasta dele. Mesmo sabendo que seu sonho de ser europeu vai ficando cada vez mais distante, ele mantém boas relações com a Europa. Alguns autores vêm chamando esse sonho da volta do califado como “otomanismo”. Existe ainda a questão dos curdos, cuja maioria desse povo vive em território turco. Esse é um povo que, ao sonhar também com seu estado e país próprio – que eles chamam de Curdistão – acabam fazendo alianças as mais díspares e muitas vezes equivocadas. No caso da Turquia, Erdogan os enfrenta com firmeza, na mesma medida que os usa no combate ao governo legitimo da Síria do presidente Bashar Al Assad.

Hoje, podemos dizer que esse projeto de Califado, bem como o chamado Estado Islâmico, está praticamente derrotado. E foram derrotados pelo chamado Arco da Resistência, formado na prática pelos países Irã, Iraque, Síria e Líbano, bem como os guerrilheiros do Hezbolláh e mais um conjunto de forças que englobam os comunistas, socialistas, patriotas, nasseristas, cristãos. Não é um acordo formal. Apenas uma aliança política que existe na prática. É como – usando uma linguagem militar – todos marchassem separados, mas golpeassem o mesmo inimigo juntos.

O futuro tanto de Erdogan quanto da própria Turquia

Não há que se negar a importância da Turquia em qualquer cenário no Oriente Médio expandido (22 países árabes, mais o Irã, a Turquia e Israel; quatro povos em uma só região riquíssima em petróleo). Podemos resumir o futuro de ambos relacionado com duas questões:

1. Devemos nos indagar sobre o quanto Erdogan estaría disposto a islamizar o seu país, dando passos atrás com relação à laicidade do Estado turco. Aqui também devemos observar o quanto poderá ser tolerante tanto o Tribunal Constitucional quanto as forças armadas turcas, que são os guardiões da constituição, que sabem de uma progressiva islamização do país;

2. Devemos ainda acompanhar o quanto Erdogan continuará virando suas costas para o mundo muçulmano e seus vizinhos árabes e persas, com seu jogo duplo e ambíguo. Sonhar com uma Turquia europeia é sonho cada vez mais distante, para uma Turquia cada vez mais asiática. Aqui também é preciso ver o quanto ele vai se aproximar ou se afastar de Israel, que ainda ocupa as colinas de Golã na Síria.

Não arriscamos previsões em um país imprevisível como a Turquia. Mas, o limite é uma ruptura total com o Ocidente e os chamados “atlanticistas” (povos do mar como prega Alexander Duguin) e até a saída da OTAN, como parte do eleitorado turco vem defendendo (a oposição hoje representa em torno de 40% do eleitorado). Esse rompimento beneficiaria a Rússia e seguramente mudaría a correlação de forças políticas não só no Oriente Médio como em todo o mundo. Vamos conferir.

*Sociólogo, professor (aposentado), escritor e analista internacional. Foi presidente do Sindicato dos Sociólogos do Estado de SP e da Federação Nacional dos Sociólogos. Ministrou aulas na Unimep por 20 anos. É autor de nove livros nas áreas de Sociologia e Política Internacional, dos quais seis sobre mundo árabe, onde esteve várias vezes. É colaborador da revista Sociologia da Editora Escala, do portal Vermelho e dos sites Duplo Expresso (onde é comentarista internacional às quintas-feiras 6h30) e Resistência.