Quando usamos o termo “guerra”, a primeira imagem que nos vêm à mente são as duas guerras mundiais, muitos tiros, mortes, bombardeios. Da mesma forma quando falamos em golpe, nos vêm à mente militares derrubando governos, torturando pessoas, prendendo opositores. Mas não é mais assim. Golpes dão-se hoje com engravatados do sistema judiciário e parlamento. E guerras se fazem de muitas formas sem que um tiro seja disparado. É disso que trataremos neste artigo. Das várias agressões, das mais variadas formas, que os EUA movem contra a República Popular da China.
Introdução
Quando Mao Zedong proclamou a República Popular da China em 1º de outubro de 1949, aquele país era semi feudal. Um país agrário em mais de 80%, com poucas indústria. Mao governou até sua morte em 1976, quando instaura-se na China a chamada era “Deng Xiaoping”. A partir da década de 1990, quando a China cresceu 7% em 1999, de lá para cá, jamais cresceu em taxas menores que essa. Chegou a crescer em 2007 a uma taxa de 11,9%, quando boa parte do mundo jamais ultrapassava os 3%.
Após a morte de Deng em 1997, a China entra em um período de governantes com mandatos de cinco anos, com direito à reeleição, que dirigiram ao mesmo tempo o Partido Comunista da China, entre eles Hua Guofeng, Jiang Zemin, Hu Jintao e o atual Xi Jinping, que tomou posse em 2013 e governará a China até 2023, podendo obter mais mandatos, já que a constituição foi modificada. Não é objeto deste artigo estudar a China em particular, menos ainda seu sistema econômico que, alguns equivocados no Ocidente, dizem ser “capitalista” (sic).
A ascensão da China, que hoje já é a maior economia, levando-se em conta o PIB medido pelo poder de paridade de compra (1), passou a ser a questão central na política externa estadunidense. Particularmente desde 2009, quando Obama toma posse em janeiro, o objetivo era “conter a China’, ou seja, tudo deveria ser feito para impedir o crescimento da China. Nesse sentido, iniciam-se os vários tipos de guerra, que pretendo descrevê-las a seguir.
Antes mesmo da China ser admitida na OMC – Organização Mundial do Comércio em dezembro de 2001 – após 15 anos de muita negociação e tentativa de bloqueio pelos EUA – os EUA tudo faziam para impedir que o gigante asiático pudesse crescer e ofuscar o capitalismo ocidental. Derrotado por ampla margem na OMC, nesses quase 20 anos o que mais se viu por parte dos Estados Unidos foi a imposição de taxas e tarifas em produtos chineses que chegam ao mercado norte-americano. Violando inclusive, várias regras da própria OMC e do chamado “livre comércio”.
O superávit chinês faz com que a China tenha trilhões de dólares para aplicar em várias partes do mundo. Os dados disponíveis são de que ela já tenha aplicado mais de dois trilhões de dólares em mais de 160 países espalhados pelos continentes africano, europeu, latino-americano (180 bilhões de dólares) e asiático. Até mesmo nos Estados Unidos, a China tem aplicado em títulos do tesouro mais de um trilhão de dólares. Isso faz alguns autores dizerem que, se um dia a China pedir de volta esse dinheiro todo, podería causar uma hecatombe nuclear no sistema financeiro internacional (2).
Acredito que a maioria das pessoas não sabem que países como Portugal, Grécia e Itália já caíram nos braços da China, estabelecendo contratos e acordos que deixam irritados os EUA. A própria Alemanha já negocia diretamente com a China. Hoje a economia europeia é mais dependente da China do que dos EUA. Mesmo o comércio em dólar vai caindo a níveis bastante drásticos. No caso do comércio bilateral entre China e Rússia, nunca havia se chegado ao nível mais baixo que o atual nas relações envolvendo o dólar.
A China abre no mundo o que os analistas chamam de Novas rotas da seda (3). O grande projeto mundial chinês é hoje denominado One belt, one way (Um cinturão, um caminho). Em 2013, um relatório do Departamento de Defesa dos EUA menciona pela primeira vez a existência de um “colar de pérolas” chinês, em uma alusão às iniciativas políticas e militares da China que tem por objetivo proporcionar à marinha chinesa – que já é a segunda do mundo hoje – acesso fácil à portos estratégicos nas grandes rotas petrolíferas nos mares Vermelho (estreito de Bab el Mandeb), Arábico, do sul da China (estreito de Malaca) e no golfo Pérsico (estrito de Ormuz), que serviriam para reabastecimento(4).
Mais recentemente, a China estabeleceu com a República Islâmica do Irã um acordo de longo prazo – por 25 anos – que poderá envolver até 500 bilhões de dólares (5). Exemplo do que o Irã fez com a Venezuela, ou seja, dois países sancionados (de forma ilegal e unilateral, sem aval da ONU) pelos EUA, estabelecendo livremente acordos bilaterais à revelia do império estadunidense.
Lembremos que o Irã enviou no mês de maio cinco super petroleiros com mais de 1,5 milhão de litros de gasolina para ajudar a Venezuela, bem como enviou ainda insumos para funcionar suas refinarias e peças e válvulas que a República Bolivariana da Venezuela não estava conseguindo importar em função do bloqueio a que estão submetidos. Até uma rede de supermercados o Irã inaugurou na Venezuela no último dia 29 de julho, chamado Megasis.
O problema central dessa “guerra”, chama-se SWIFT, uma sigla que em inglês significa Society for a World Wide Interbank Financial Telecommunication (Sociedade Interbancária financeira em rede mundial de telecomunicações), cuja sede fica na Bélgica. Essa é uma instituição fundada em 1973 por 293 bancos de 15 países, muito antes da existência da Internet, que começou a atuar em 1977. Seu grande objetivo é a transferência de dinheiro (em dólar, claro) entre países, entre bancos e entre empresas.
Por esse sistema passam trilhões de dólares de praticamente todo o comércio exterior realizado no mundo. Hoje a SWIFT já tem 209 países participantes com mais de 10 mil instituições usuárias. Nada se faz sem esse mecanismo. Assim, países como Rússia, China, Irã e Venezuela – para ficarmos nos principais sancionados pelos EUA – praticamente não têm como realizar operações interbancárias sem usar esse mecanismo que só aceita transferência em moeda estadunidense (6).
A China iniciou testes de um novo modelo de transferências interbancárias em 2015. Foram 19 bancos chineses e de outros países. Participaram 176 instituições e pessoas de 47 países em todos os seis continentes. Essa instituição chama-se Cross-Borders Inter-Bank Payments Systems ou Sistema de Pagamentos Interbancários Fronteiriços. Ainda que tenha convênio com o SWIFT, é sempre uma nova alternativa que se apresenta (7).
De forma ainda muito tímida, a Europa iniciou os testes a partir de janeiro de 2019, de uma rede alternativa ao SWIFT, chamada de INSTEX (Instrument in Support of Trade Exchanges) ou Instrumento de Apoio às Trocas Comerciais. Ele funciona para transações que não são feitas em dólar e que não usam o sistema controlado pelos EUA. Ele vem sendo usado na Europa basicamente para os acordos comerciais com o Irã, em especial para a compra de seu petróleo (8).
Em um mundo onde se diz que vivemos a revolução industrial 4.0 – da medicina gênica, da inteligência artificial, a bioengenharia, da impressora 3D – essa acaba sendo uma das guerras principais. Em meados da década de 1990, quando aqui passou a vigorar o “real” como moeda estável, começaram a aparecer lojas de R$1,99. Todas elas com quinquilharias chinesas importadas. E era comum dizer que eram produtos “imitados”, baratos e de “segunda linha”. Isso faz parte de um passado completamente esquecido.
As maiores empresas do mundo passaram a abrir grandes plantas fabris na China, incentivados pelo próprio governo chinês. A maior fábrica da Apple, por exemplo, fica na China. A GM – a maior empresa do mundo, com quase um milhão de empregados e que se dizia em 2008 to big, to fail – (muito grande para falir), tem seu segundo maior mercado de carros na China, que encontra-se muito mais avançada que os EUA em diversos campos tecnológicos. Concorre diretamente em microchips, em tecnologias de celulares e até na corrida espacial como veremos mais à frente.
O caso mais emblemático está relacionado com a empresa de telefonia móvel chamada Huawei, que já disputa o primeiro lugar no mundo. Essa empresa consegue produzir um celular com mais tecnologia e sofisticação que o celular da Apple, o Iphone. E o que é mais importante: pela metade do preço. Apoiar e promover essa empresa ou tentar destrui-la virou assunto de estado para os EUA e, claro, para a China, que a promove em todo o planeta.
Mas não é só isso. Está em disputa o mercado trilionário (em dólares, claro) da instalação da quinta geração de telefonia móvel, chamada 5G. A Huawei tem o melhor 5G do mundo. Na verdade, quase o único, já que os EUA não concluíram as suas pesquisas e desenvolvimento da nova geração. Mas, toda a sua máquina diplomática, militar e comercial, está empenhada para que países em todo o mundo não adotem o 5G chinês, que é melhor e mais barato. Ou seja, é uma ação não para que se adote um modelo melhor que o 5G chinês, mas para que não se adote modelo algum, já que eles não têm um para oferecer.
Não podería deixar de registrar na forma de um parênteses, a degradante situação onde o embaixador dos EUA no Brasil, o Sr. Todd Chapman declarou no dia 29 de julho que se o Brasil adotasse a tecnologia 5G chinesa e permitisse a construção de uma fábrica da Huawei em nosso território que iríamos sofrer graves consequências (sic). Um governo soberano tería imediatamente chamado o embaixador a se explicar junto ao nosso ministério das Relações Exteriores. Mas, por aqui nada acontece porque nossa política externa é de subserviência aos EUA. E ficará tudo por isso mesmo.
Só para termos uma noção do significado dessa nova tecnologia – e nem quero falar em termos de velocidade impressionante para baixar programas e arquivos de qualquer dimensão – quero exemplificar com o recurso da telefonia quando vemos a pessoa com que falamos. Esse recurso é bastante comum hoje, pois todos os que têm o aplicativo chamado de WhatsApp (que por aqui popularmente conhecido como “Zap”).
A coisa mais comum hoje é “ligar com câmera”. Na nova tecnologia da Huawei – e também de outra fabricante chinesa de celulares, a Xiaomi – o ato de “ver” a pessoa com quem falamos passará por uma revolução. A pessoa com quem falamos será materializada em nossa frente como se nós a víssemos em tamanho real e a pudéssemos tocar a partir da projeção por um holograma. Isso já é possível a partir da tecnologia dos novos celulares Huawei.
Aqui é onde o disparate e as diferenças de ação ficam mais explícitas. A China – e diga-se de passagem, outros países socialistas também, que cuidam realmente da saúde de seus povos – praticamente erradicou e controlou a pandemia. Podemos ver esse disparate nos números mais recentes.Os dados instantâneos fornecidos pela Universidade John Hopkins mostram que a China permanece com 4.658 mortos pela Covid-19, enquanto nos EUA os mortos já chegam a 150.733, ou seja 32 vezes mais! (9).
Mas as diferenças não param por aí. Enquanto a China enviou para muitos países do mundo EPIs (Equipamentos de Proteção Individual para os profissionais de saúde), bem como enviou ventiladores pulmonares (respiradores artificiais) e tantas outras coisas, incluindo aí profissionais de saúde, como médicos e enfermeiros – como Cuba faz com as suas brigadas médicas Henry Reeves, (candidata ao Nobel da Paz), os EUA se omitiram. Até mesmo a União Europeia deu as costas para a Itália quando esta mais precisou de ajuda (não por acaso a bandeira da UE foi arriada e a da China hasteada em Roma, na sede do governo italiano).
Mas, os chineses foram muito mais longe. Declararam total apoio à Organização Mundial da Saúde – OMS, um dos maiores organismos internacionais do sistema da Nações Unidas, aumentando inclusive seu aporte financeiro. E o que fez Donald Trump? Retirou-se da Organização sob críticas de que esta estava conduzindo muito mal a luta contra a pandemia (Washington respondia por 15% de todo o orçamento anual da OMS, com 893 milhões de dólares em um total de 2,8 bilhões de dólares) (10).
Não bastasse tudo isso, tanto Trump como este que se apresenta como “nosso” presidente e que atende pelo nome de Jair “Messias” (sic) Bolsonaro, acusaram de várias formas que o vírus poderia ter surgido na China e em um experimento de guerra bacteriológica. Um verdadeiro absurdo descartado pela comunidade científica do mundo. Chegaram – ambos os países – a até nominar o vírus de “comuna-vírus”.
Com todas essas atitudes e ações por parte dos EUA e as respostas que a China tem dado, mostram não só a sua superioridade moral, como a comprovação pelos números, de que todas as medidas que esse país adotou estão plenamente corretas. Trump deve pagar caro por tudo que não tem feito durante essa pandemia nas eleições de novembro próximo – se é que elas ocorrerão. Lá e aqui, pois a esta altura tenho sinceras dúvidas, que expressei anteriormente em artigo específico sobre a abstenção monstro que se avizinha por aqui.
Quando eu era jovem, jogávamos um jogo chamado “Batalha Naval”, onde os participantes mencionavam números que diziam respeito à determinadas coordenadas em um papel quadriculado (para trabalhos matemáticos) e dizíamos o que havia nesses quadrantes (normalmente eram destroyers, contratorpedeiros, fragatas, submarinos e porta-aviões). Vencia quem afundava por completo as embarcações da “frota” do inimigo com seus “tiros” disparados por coordenadas matemática. Não sei se nossa juventude ainda joga esse jogo matemático de estratégia e inteligência. O que sei é que o mundo vive algo parecido em todos os mares e oceanos que existem na Terra (fala-se em “sete mares” e três oceanos).
A “senhora” dos mares no mundo há tempos deixou de ser a Inglaterra. Os Estados Unidos possuem hoje – indiscutivelmente – a maior armada do planeta. Ao todo são sete frotas navais totalmente operacionais (que são as frotas 2ª, 3ª, 4ª, 5ª; 6ª, 7ª e 10ª). No total eles possuem 430 navios de guerra, 3,7 mil aeronaves (fora os aviões da própria aeronáutica), 50 mil blindados (a maioria anfíbios) e 75 mil instalações militares espalhadas pelo mundo (11).
Não é objeto deste estudo nos aprofundarmos no poderio militar estadunidense. O certo é que cada uma dessas frotas navais é comandada por um vice-almirante, e tem como navio-principal um porta-aviões, cercados de pelo menos mais dez embarcações, cada uma delas para dar-lhe a devida proteção (essas belonaves são na prática aeroportos flutuantes, totalmente desprotegidos; cada um deles leva até 90 aviões e transporta seis mil marinheiros/as).
Apenas para efeitos de registro, qualquer ponto da terra está acessível a um ataque estadunidense feito a partir de um avião caça decolado de um desses porta-aviões espalhadas pelo mundo, em pelo menos 90 minutos. Uma ordem de ataque do presidente dos EUA faz com que esses aviões alcem voo de um porta-aviões, façam o seu ataque e retornem à mesma embarcação sem precisar de terra para pouco. É um poderio inimaginável.
Para entender a geopolítica mundial, tenho me aprofundado nos estudos militares, em especial os comparativos entre as várias forças nacionais em todo o mundo. Tenho usado o termo “Clube dos porta-aviões”, em alusão ao chamado “Clube Atômico”. Apenas nove nações possuem artefatos nucleares, como sabemos: EUA, Inglaterra, França, China, Rússia, Índia, Paquistão, Correia Popular e Israel – (ainda que este país jamais tenha admitido isso). E apenas nove também possuem porta-aviões, a saber: As mesmas seis primeiras do Clube Atômico e mais Espanha, Itália e Tailândia (registro que estes três últimos possuem pequenos porta-aviões, pois estes deslocam até 40 mil toneladas enquanto os outros deslocam acima de 90 mil).
Em linguagem militar, um porta-aviões projeta o maior poder naval que se pode imaginar. Os EUA possuem 11 porta-aviões operacionais, China, Índia e Reino Unido possuem dois enquanto Rússia e França apenas umcada (os outros três pequenos países possuem dois pequenos porta-aviões, cada um deles). No caso dos EUA, os dez primeiros em operações são da chamada classe Nimitz (nucleares), com catapultas (e não rampa para decolagem) e o 11º é da nova classe Gerald Ford (comissionado em 2017), maiores e mais modernos que substituirão os da classe Nimitz). Todos os porta-aviões de outros países são eletrodiesel (12).
Ainda que a China tenha mais navios que os EUA (512 no total), sua frota de aviões chega apenas a 700, ou seja, um quinto do que tem a marinha estadunidense. No entanto, o que desespera os Estados Unidos são as pretensões navais chinesas. Até 2023 deve entrar em operações o seu terceiro porta-aviões, que será nuclear e com lançamento dos aviões por catapulta (e não mais por rampa). Mas, até 2030, a China terá um total de sete porta-aviões, número esse jamais sonhado por qualquer outra nação e fabricados todos em território chinês.
O maior fator de tensionamento existente hoje nos mares e oceanos ocorre no chamado Mar do Sul da China, que banha basicamente, além da própria China, os países como Vietnã, Brunei, Filipinas e Malásia. A China reivindica sua soberania em uma região inicialmente chamada de Onze Raias, fixadas em 1º de dezembro de 1947, quase dois anos antes do triunfo da Revolução Popular. O primeiro ministro da jovem República Popular da China, Zhou Enlai, diminuiu para Nove Raias, que é o atual traçado do mar do Sul da China, que banha os quatro países acima mencionado (13).
É preciso registrar que a China não realiza exploração comercial nas chamadas Zonas Econômicas Exclusivas fixadas pelo UNCLOS (Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos do Mar) de cada um dos respectivos quatro países. Apenas ela exerce o seu direito à livre navegação com seus navios, comerciais e militares, por essas regiões, o que lhe é assegurada pelas leis internacionais.
Mas o gigante asiático fez muito mais que isso. A China transformou dois pequenos arquipélagos praticamente desabitados e sem nenhum valor comercial – as ilhas Paracel e Spratly, em verdadeiras cidades marinhas, com aeroportos, milhares de habitantes e postos governamentais. E, claro, instalou bases militares nessas localidades que lhes é de direito. E fez mais. Transformou atois em ilhas artificiais, lá também instalando equipamentos militares para a sua defesa. Isso irritou profundamente os EUA, mas também o Japão, Austrália, os quatro países citados e até a Índia se sentiu incomodada (este país, governado pela extrema direita com o Brasil e os EUA, vem realizando exercícios navais com o Japão e os EUA no chamado Oceano Índico.
Ocorre que nesse mar do Sul da China está situada a ilha de Taiwan, que alguns países chamam de República da China (sic), que representou a China na ONU até 1971. Essa localidade é quase uma possessão estadunidense, sem autonomia alguma. É uma base militar, um local que os EUA fornecem imensas quantidades de armas.
Eu costumo dizer que Taiwan é para os EUA no Sul da China o que Israel é no Oriente Médio árabe. A menina dos olhos. O grande pavor dos EUA é que a ilha – que a China considera uma espécie de província rebelde, mas adota o chamado “um país, um povo e dois sistemas”, aconteça o mesmo que ocorreu em Hong Kong – volte a ser administrada integralmente pela China, possessão inglesa entre 1842 e 1997.
Na década de 1950, não se usava o termo “guerra”, mas sim “Corrida Espacial”. Era uma marcha desenfreada – e a ciência agradece – que era disputada entre a antiga URSS e os EUA. E nessa “corrida” (guerra), os primeiros três lances do jogo, por assim dizer, a União Soviética venceu. Foi a primeira a colocar em órbita um satélite artificial, o Sputnik. Mas foi também a primeira a colocar em órbita um animal – a cachorrinha Laica – e a primeira a colocar um ser humano orbitando nosso planeta – o cosmonauta Yuri Gagarin.
Hoje, os EUA não têm concorrente na “guerra/corrida espacial”. Ou pelo menos não tinha. No dia 23 de julho, o foguete chamado Longa Marcha 5Y4 decolou rumo à Marte, o planeta vermelho. E leva consigo uma cápsula que orbitará até fevereiro do ano que vem o planeta e em seguida aterrizará no mesmo, e de dentro dessa cápsula sairá um veículo do tipo rover para explorar o planeta, tal qual os EUA fazem desde 6 de agosto de 2012, com o seu rover chamado Curiosity (14).
A reação estadunidense tem sido, já há algum tempo, militar. Não por acaso, em 1º de setembro de 1982, os EUA criaram uma Força Espacial, à época ainda subordinada ao Comando Aereo Espacial dos EUA. A partir de 20 de dezembro de 2019, eles criaram a United States Space Force – Força Espacial dos Estados Unidos, com uma dotação orçamentária de oito bilhões de dólares e ficará subordinada ao Departamento da Força Aerea dos EUA. Sabem qual será a sua missão principal? Acertou quem disse Guerra Espacial! (15).
Os recentes episódios de fechamento de consulados – da China no Texas e dos EUA em Shengdu – são apenas uma pequena parte aparente de uma guerra antiga que tem ocorrido na esfera diplomática. Temos que lembrar que entre 1949 – ano da revolução popular na China e 1971, quem representava a China nas Nações Unidas era a tal “República da China”, cuja sede ficava em Taiwan e era integrada pelos perdedores da revolução Chinesa, liderados por Chiang Kai-sheck (16).
A Assembleia Geral da ONU, reunida no dia 25 de outubro de 1971, por ampla maioria de votos (76 a favor – quase 60% –e 35 contra, com 17 abstenções e três ausências), aprovou a Resolução nº 2.758 que excluía a tal “República da China” (leia-se Taiwan) e indicava a República Popular da China como única e legítima representante do povo chinês junto ao sistema das Nações Unidas. Ainda hoje Taiwan é reconhecida por 15 estados-membros da ONU, incluindo o Vaticano (Observador).
O polêmico e controverso presidente Richard Nixon (que eliminou a paridade do dólar com o ouro e mandou espionar a sede do Partido Democrata, no Edifício Watergate, do famoso escândalo), propiciou uma atitude que chocou parte do mundo à época. Apesar dos EUA terem votado contra a expulsão de Taiwan como “representante” do povo chinês na ONU no ano de 1971, em 21 de fevereiro de 1972,o presidente Richard Nixon desembarca em Pequim, onde é recebido no aeroporto por Zhou En-Lai, então primeiro Ministro da República Popular da China. Ele irá ficar no país até o dia 28 e reunir-se-ia com o lendário Mao Zedong (que morreria quatro anos mais tarde, quando passaría o comando do país para o também lendário Deng Chiaoping).
Apesar da visita, a batalha pelo reconhecimento diplomático e a troca de embaixadores ainda duraria alguns anos. Ela ocorreria apenas na gestão do presidente Jimmy Carter. A partir de 1º de janeiro de 1979, os EUA romperiam relações diplomáticas com Taiwan e passariam a ter relações apenas com a República Popular da China, transferindo a sua embaixada da cidade de Taipé, em Taiwan, para Pequim. Isso ocorre quase 30 anos após a Revolução Popular em 1949.
Mas, nunca foram tranquilas essas relações. O próprio Congresso dos EUA aprovaria em abril desse mesmo ano, uma resolução que dava certos privilégios e oportunidades à Taiwan – que segue até hoje se apresentando como “República da China” (sic).
Essa ilha – considerada pela China como uma espécie de província rebelde, tem ínfimos 25 milhões de habitantes – perto dos quase 1,5 bilhão de habitantes da China continental –, mas é um verdadeiro arsenal de guerra, tamanha a quantidade de armamentos que os EUA fornecem para o governo taiwanês.
Isso, claro, sempre irritou a China e é motivo de constante tensão entre os dois países até os dias atuais. Tal qual como faz com Hong Kong, a China menciona esses dois casos como “um país, dois sistemas” (socialista e capitalista).
A China ingressou na Organização Mundial do Comércio no ano de 2001. No entanto, durante 15 anos, os EUA tudo fizeram para que isso não ocorresse. Sob o esdrúxulo argumento que não existiria na China o chamado “livre comércio”. Isso provou-se uma falácia, pois hoje o que mais dinamiza a economia chinesa é exatamente o imenso consumo interno, a partir de seu “socialismo de mercado” (conceito esse que boa parte da esquerda não consegue compreender). Os EUA, sempre que podem, representam contra a China em órgãos internacionais multilaterais, em especial na própria OMC.
O episódio mais recente de tensionamento e de “guerra diplomática” foi o fechamento do consulado chinês na cidade texana de Houston ocorrido no dia 22 de julho, sob o argumento que os diplomatas e servidores chineses que lá trabalhavam eram “espiões” (sic). Isso é risível, pois em qualquer lugar do mundo, em qualquer país, todos os funcionários diplomáticos de qualquer governo têm a função básica e primordial de coletar informações do país onde estão sediados para enviar ao seu país de origem.
A China retaliou na mesma proporção. Dois dias depois, no dia 24 de julho, determinou o fechamento do consulado estadunidense na cidade de Shengdu (cidade com 16 milhões de habitantes), situada na província de Sichuan.
É sempre bom lembrar que cada um desses países possui cinco consulados, agora reduzidos para quatro (e sabe-se lá quantos mais poderão vir a ser fechado). Não devemos nos esquecer que os serviços consulares estão muito mais ligados aos cidadãos diretamente, aos seus interesses pessoais, resoluções de problemas burocráticos, de forma que o fechamento de uma unidade consular causa sempre grandes transtornos.
Registro que esse tensionamento elevou-se a um grau máximo, desde que a pandemia iniciou em janeiro deste ano. Analistas internacionais afirmam que essa tensão estaría hoje nos níveis de 1971, quando da votação na ONU – com apoio dos EUA – para que Taiwan seguisse “representando’ o povo chinês.
Destaco, finalmente, o que venho chamando de “Guerra” ou “Corrida” das Vacinas. Separei esta “guerra” do “Guerra contra o coronavírus” de forma proposital e consciente. Isso porque há uma disputa no campo da ciência sobre quem será o primeiro país que apresentará para a humanidade, a sua vacina contra a Covid-19. É importante registrar que a imprensa noticia a existência de mais de 160 pesquisas em curso de vacinas em todos os continentes, mas que 25 dessas pesquisas já se encontram em fases finais de testes.
É bom lembrar que essa doença, que decorre da contaminação pelo vírus da família Corona, não tem absolutamente nenhuma cura conhecida e nenhum medicamento (fármaco) conhecido que possa ser consumido de forma segura para eliminar a doença. Não vou me deter sobre essa temática, por fugir de nosso foco no artigo (17).
Desde janeiro, quando apareceram as primeiras mortes e com a contagem de infectados e óbitos, feitos por diversos órgãos e universidades no mundo, iniciou-se a corrida a uma vacina. Os cientistas diziam sempre que isso demoraria até 18 meses para estar plenamente testada e se iniciar a imunização em massa da população mundial, ou seja, que antes de meados de 2021 não se podería ter esperança de a humanidade ter uma vacina. E lembro que a vacina imuniza contra o vírus, mas não curará os que já estão infectados.
A produção de uma vacina tem que passar por várias fases e etapas. A última fase – chamada de fase 3 – é quando se testam em larga escala grandes contingentes populacionais (algumas chegam a testar em até 50 mil pessoas). Mesmo depois disso, é preciso analisar os resultados para se iniciar a produção. Mas, o aspecto da “guerra” que aqui quero debater é exatamente a concepção por trás dessa corrida às vacinas.
De um lado, temos os EUA injetando grandes contingentes de recursos financeiros para que a vacina da empresa farmacêutica Pfizer, que é a segunda maior empresa do setor do mundo (perde apenas para a Johnson & Johnson) e a 48ª maior empresa no planeta, esteja disponível em dezembro deste ano.
Donald Trump – que com Bolsonaro e Modi da Índia, são considerados os três piores governantes no enfrentamento da pandemia – já comprou antecipadamente 100 milhões de doses dessa (possível) vacina, que ainda nem se sabe se funcionará mesmo. Ou seja, a concepção dessa gente é que uma vacina não deve ser um patrimônio da humanidade, mas sim objeto de comércio e de lucros.
Do lado da China – e também da Rússia, registre-se – a descoberta de uma vacina não gerará o patenteamento, mas sim a concessão livre para que os países e laboratórios públicos em todo o mundo possam fabricá-la em larga escala para a imunização total de suas populações. Isso nada tem a ver com o comércio e a mercantilização da saúde, como os capitalistas neoliberais fazem.
A Rússia até tem procurado o Instituto Osvaldo Cruz no Rio de janeiro pra estabelecer convênios para a fabricação da sua vacina. Veicula-se na imprensa que as doses dessas vacinas da Pfizer podem chegar a 30 ou mais dólares, um verdadeiro absurdo quando o custo real disso ficaria em centavos de dólares ou no máximo um dólar.
Nunca é demais lembrar o caso do Dr. Jonas Edward Salk, o médico virologista que descobriu a vacina contra a poliomielite, que até a década de 1950 era o maior pavor entre as famílias nos EUA e nos países do mundo pois, se a doença não matasse, deixava sequelas nos seres humanos, desde crianças, com paralisia de vários tipos e níveis. Dr. Salk, que dizia-se trabalhava 16 horas por dia para descobrir a vacina, ao ser perguntado se ele patentearia a sua vacina, ele teria respondido: “A quem pertence a minha vacina? Ao povo! Você pode patentear o sol?” (18).
Aqui por estas bandas brasileiras, ao que tudo indica, o “governo” brasileiro deverá se associar aos Estados Unidos e adquirir a vacina da Pfizer, desprezando as vacinas chinesas ou mesmo russa.
Conclusões
A China, no rumo da construção de um mundo multipolar, em oposição à unipolaridade que vivemos hoje, vive dois grandes dilemas e problemas na atualidade, por assim dizer. O primeiro deles é a ainda grande hegemonia do dólar como moeda principal e quase exclusiva no comércio exterior em todo o mundo. O segundo, é exatamente o sistema chamado SWIFT, controlado pelos EUA, que só realiza operações de transferências de grandes volumes financeiros na moeda estadunidense. Esse sistema não aceita euros, yuan, iene ou mesmo rublos. E os outros dois sistemas alternativos a ele ainda são absolutamente insuficientes, ainda que eles já aceitem outras moedas nas transferências interbancárias.
Nesse sentido, segundo estudiosos de economia chinesas e ligados ao PC da China, o gigante asiático socialista adotará duas importantes medidas: 1. Internacionalizará ao máximo a sua moeda, o Yuan, procurando estabelecer comércios bilaterais com os países negociando com suas moedas locais e 2. Tudo fará para o chamado “desacoplamento” do dólar, ou seja, desdolarizar tudo que for possível, desindexar com relação à moeda estadunidense.
Não se sabe ainda se a China usará e mesmo procurará expandir o novo modelo europeu de pagamentos chamado INSTEX, criado basicamente para ser usado no comércio com o Irã. Ou se expandirá o outro modelo alternativo, o CIPS.
A China iniciou desde abril de 2019, os primeiros testes com a sua moeda digital, o Yuan Digital. Em abril de 2020, a experiência foi implantada nas grandes cidades Shenzhen, Suzhou, Shengdu e Xiong’na, cuja população recebeu uma carteirinha com o aplicativo que permite todos os pagamentos serem feitos com essa nova moeda digital. Até onde essa experiência chinesa vai desembocar ainda não se sabe. É provável que ela vá se expandindo para todo o país. E a diferença é que essa moeda teria um lastro e um governo que a apoie, completamente diferente da chamada “cripto moeda bitcoin”.
Há um forte debate na academia se essas guerras “sem tiros” possa desembocar mesmo em uma guerra “com tiros” e tudo o mais, nos moldes dos que foram as duas guerras mundiais anteriores (1914-1918 e 1939-1945).
O professor da Universidade de Harvard, Dr. Graham Alisson, produziu um artigo excepcional em setembro de 2015, mencionando o que ele chamou de “Armadilha de Tucídides”. Nesse trabalho ele indaga sobre a inevitabilidade de uma guerra real mesmo – “com tiros e com sangue” – entre os EUA e a China, relacionados com uma situação onde um país em ascensão passa a incomodar e ofuscar uma potência hegemônica em determinada época da história, como alertou o historiador ateniense por volta de 2.500 anos antes de nossa era atual.
Mas, esse será assunto para outro artigo em breve (18).
Notas de referência
* Sociólogo, professor universitário (aposentado), escritor de 13 livros (alguns em coautoria). Atualmente exercendo a função de analista internacional, sendo comentarista da TVT, da TV 247, do Canal Resistentese do Outro lado da notícia, todos por streaming no YouTube.