Se pudesse responder a pergunta acima do título, eu ou qualquer outro estudioso do Oriente Médio responderia de pronto: não dá para saber. É a pura verdade. Nunca o Egito teve uma eleição razoavelmente democrática para escolher seu presidente. Só para termos uma ideia disso, entre 1952 quando jovens oficiais proclamam a República até hoje, passaram 60 anos e o país teve apenas três presidentes: Gamal Abdel Nasser, Anuar El Sadat e Hosni Mubarak. Agora foi eleito um membro da Irmandade Muçulmana e gostaria de dar algumas opiniões sobre essa nova realidade.
Os resultados do 1º turno
Nos dias 23 e 24 de maio a República Árabe do Eito realizou as suas primeiras eleições democráticas, ainda que sob tutela de uma junta militar comandada por generais oriundos da época da ditadura Mubarak. Diversos partidos participaram desse processo, à exceção honrosa do Partido Comunista do Egito, cuja legalidade ainda não foi conquistada.
Para efeitos de tecermos comentários gerais sobre esta primeira etapa dos resultados e as perspectivas do segundo turno, apresentamos abaixo os dados oficiais dessas eleições. Lembramos que o voto não é obrigatório, de forma que a abstenção foi bem elevada. Vamos aos números finais:
Eleitores inscritos: 50.996.746
Comparecimento: 23.672.236 ou 46,42%
Abstenções: 27.324.510 ou 53,58% dos inscritos
Nulos: 406.720 (além de baixíssimo os nulos, com apenas 1,72% - nem aqui no BR com votação eletrônico eles são tão baixos assim, eles não indicam votos em branco...).
Os candidatos obtiveram as seguintes votações individuais:
1º lugar – Mohamed Morsi – 5.764.952 – 24,78% (Irmandade Muçulmana e do Partido da Justiça e da Liberdade)
2º lugar – Ahmed Shafik – 5.505.327 – 23,66% (Independente, vinculado aos militares da junta, marechal-brigadeiro, último 1º Ministro de Mubarak)
3º lugar – Hamdeen Sabahi – 4.820.273 – 20,72% (este é nasserista e foi apoiado pelos socialistas e comunistas, da Praça Tahir)
4º lugar – Abdoul Fotouth – 4.065.239 – 17,47% (racha da Irmandade e apoiado por jovens radicalizados da praça)
5º lugar – Amr Mousa – 2.588.850 – 11,13% (ex-scretário-geral da Liga Árabe)
Outros – 520.875
Nulos – 406.720
Totais – 23.672.236
Assim, vejam por esses números que para o 3º colocado, um secularista, nasserista e socialista fosse para o 2º turno, faltaram apenas 685.054 votos ou 2,94% do total, sendo que a 4ª posição teve 17% e a 5ª outros 11%. Se somarmos as posições do 3º ao 5º colocado, que poderia ter sido construída uma aliança ampla, teríamos tido a perspectiva de 49,32%, mais do que suficiente para termos ido ao 2º turno ou até vencermos no 1º turno. Shafik teria ficado em 3º lugar e em sinuca de bico, pois quem ele apoiaria no 2º turno? Provavelmente nunca apoiaria a Irmandade.
É certo que com quase nenhuma vida democrática, o Egito não tinha nenhuma tradição de alianças, acordos políticos, tais quais no Brasil são corriqueiros e naturais há quase trinta anos, desde a redemocratização em 1985.
O 2º turno das eleições
Com esse resultado, foi imediatamente convocada o 2º turno das eleições, marcadas para os dias 16 e 17 de junho. Apenas os dois mais votados, o da Irmandade e o do antigo regime militar foram chamados. Uma situação difícil para a grande maioria do eleitorado. Não tivemos notícias de que os candidatos que se posicionaram entre o 3º e 5º lugar tivessem declarado seu apoio a um dos dois finalistas.
No entanto, também igual ao que os eleitores do mundo inteiro fazem em eleições com dois turnos, acabou-se por escolher o que se chama de o “menos ruim”, do ponto de vista, claro, da lógica dos eleitores. Ou, acaba-se votando em um candidato não porque se goste dele, mas para que se impeça que um pior possa vencer o pleito.
Os números oficiais da junta eleitoral, que acabou atrasando três dias a divulgação oficial (era para ter sido em 21 de junho e só foi feito dia 24, domingo) são os seguintes:
Eleitores inscritos e aptos: 50.958.794
Comparecimento: 26.420.763 (ou 51,85%)
Abstenções: 24.538.031 (48,15%)
Nulos: 843.252 (ou 3,2%)
Votos válidos: 25.577.511
1º Lugar: Mohamed Morsi – 13.280.131 (ou 51,92% dos válidos)
2º Lugar: Ahmed Shafik – 12.347.380 (ou 48,27% dos válidos).
Com isso, vê-se que a diferença de ambos foi de meros 932.751 votos ou 3,65%. Bem pequena. Aqui é difícil saber como foi a migração de votos dos colocados entre 3º e 5º lugar, mas cada um dos que disputaram o segundo turno amealhou praticamente sete milhões de votos. Uma eleição disputada.
O novo presidente egípcio
Não é da nossa pretensão falar tanto sobre quem é o novo presidente do Egito, mas sim o significado de sua eleição, o contexto em que ela ocorre e possíveis desdobramentos disso. São, claro, considerações iniciais, após ouvir e debater com um conjunto de arabistas e estudiosos do Oriente Médio.
Mohamed Morsi é engenheiro e com doutorado nos EUA. Todos os seus três filhos nasceram nesse país e possuem cidadania norte-americana. É membro da Irmandade Muçulmana, organização que funciona como um partido político e que existe desde 1928. O slogan de sua campanha foi “O Islã é a solução”. Mas sabemos que isso não é verdade. Em país nenhum entre os 47 que se proclamam islâmicos, a religião é solução. Até porque isso excluiria da sociedade todos os que não professam essa fé ou nenhuma fé, ainda que isso possa significar uma parcela pequena da população.
Ironia do destino, Morsi esteve preso sob o governo de Mubarak no ano de 2007 e lá ficou vários meses na cadeia. Não era o candidato prioritário da Irmandade, cujo nome indicado acabou sendo impugnado pela Comissão Eleitoral. Foi deputado em um parlamento consentido pela ditadura Mubarak. Em eleições de lisura contestada e duvidosa, a Irmandade tinha em torno de 20% do parlamento e Morsi era parlamentar nesse contexto.
Para o 2º turno, Morsi moderou seu discurso. Procurou estabelecer alianças com os candidatos derrotados, da mesma forma que Shafik tentou fazê-lo. A imprensa ocidental não registrou nenhuma declaração pública dos candidatos derrotados de que apoiaram Morsi ou Shafik na segunda volta eleitoral.
A posse de Morsi ocorre no sábado, dia 30 de junho. E ele toma posse com os poderes presidenciais extremamente diminuídos por decisão da junta militar. Mas, mais do que isso. A mesma junta nas vésperas do pleito, em 15 de junho, dissolveu o parlamento. Ou seja, Morsi toma posse sem que deputados possam elaborar leis e uma nova constituição vem sendo escrito por um seleto grupo de apenas cem pessoas.
Aqui é preciso registrar algumas incertezas que rondam o Egito neste momento, para as quais o novo presidente ainda não deu respostas:
Chamou a minha atenção, no discurso de posse feito pela primeira vez em uma Universidade, três aspectos proclamados pelo novo presidente Morsi:
Há uma questão que é indiscutível: toda a imprensa israelense demonstrou extrema cautela com sua eleição. Até receio e medo em alguns casos. Será ele um “amigo de Israel”?
Em diversos artigos que pudemos ler que analisaram e repercutiram esse momento aparecem afirmações sobre a possibilidade de ter havido um acordo entre o governo dos militares e o proclamado eleito da Irmandade. Tudo é possível. A história e vida mostrará isso. É possível que tenha havia um pacto, que concessões tenham sido feitas.
Em comunicado emitido no dia 27 de junho, o Partido Comunista Egípcio faz análise dos resultados do 2º turno, três dias antes da posse de Morsi. Tivemos acesso a esse documento em árabe, que pode ser lido neste endereço http://www.solidnet.org/egypt-egyptian-communist-party/3186-cp-of-egypt-ar (a tradução agradeço ao Dr. Assad Frangiéh).
Grosso modo, podemos dizer que as preocupações acima expressas são compartilhadas pelo PC Egípcio. Faço a seguir um pequeno resumo da posição dos comunistas egípcios:
Aqui, vale destacar que o Partido evita fazer afirmações sobre como será o governo de Mohamed Morsi. Prefere fazer-lhes questionamentos. Assim, menciona indagações do tipo:
Essas são dúvidas ainda que não temos respostas e nem o PC Egípcio. O tempo dirá. Por fim, o Partido no Egito indica quatro propostas para este momento histórico:
Conclusões pessoais
Ainda não é possível avaliar um governo que tomou posse há alguns dias apenas. É bem verdade que a trajetória história do agrupamento da Irmandade deixa sérias dúvidas sobre o lado que ela ficará. As alianças feitas no passado, seu comportamento anticomunista e em muitos momentos em aliança com as forças conservadores e do velho regime indicam que devemos mesmo ter cautela neste momento na avaliação para onde irá o novo governo de Morsi.
No entanto, o mundo árabe vive mudanças. Não é mais possível manter tudo como estava, em especial os acordos militares com os EUA (estima-se em quase dois bilhões de dólares em ajuda militar que vêm dos EUA e vão diretamente para o exército, sem controle do governo; esses valores só perdem para o três bilhões que Israel recebe dos EUA todos os anos). A mesma coisa os acordos de paz de 1979.
As massas árabes e os trabalhadores foram às ruas. Se ainda não fizeram a sua revolução mais avançada – até pela falta de um partido revolucionário e consequente que a comandasse – as condições ainda podem chegar a isso.
É preciso ver como será a formação do novo governo, as alianças que ele proporá, os acordos públicos que serão estabelecidos. O Egito legalizou dezenas de partidos – menos o Comunista. O nasserista e secular que no 1º turno ficou em terceiro lugar pode ser chamado, assim como o do quarto lugar, um racha da própria Irmandade e mesmo Mousa da Liga Árabe. Tudo isso irá moldar a amplitude e o caráter do novo regime.
Não me encontro entre os que acham que nada mudará. A correlação de forças não permitirá isso. A Irmandade e seu novo presidente sabem que podem ser atropelados pelo povo, pela fúria das ruas árabes, sedentas por mudanças profundas e por um Egito soberano, defensor dos interesses de seu povo e que nunca mais volte as costas tanto para os egípcios, quanto para o povo árabe em geral e aos palestinos em particular.
Acompanharemos o dia-a-dia. Voltaremos ao tema.
* Sociólogo, escritor e arabista. Foi professor de Sociologia da Unimep entre 1986 e 2006. Presidiu o Sindicato dos Sociólogos de SP de 2007 a 2010. E-mail: lejeunemgxc@uol.com.br.