Imperialismo quer o controle da Líbia

Prof.Lejeune Mirhan - 13-08-2021 2164 Visualizações

Já tem certo tempo que tinha prometidos aos meus leitores, abordar a questão da guerra imperialista contra a Líbia. Um assunto extremamente polêmico, que chega a dividir parte da esquerda brasileira e europeia. Publicamos agora esses primeiros comentários.

A Líbia e o Contexto da Revolução Árabe

Nunca tivemos dúvida de que o processo revolucionário que eclodiu no mundo árabe, começando pela Tunísia e depois com o Egito, teria forte poder de “contágio”. Alastrou-se para o Iêmen, depois Bahrein, Argélia. Teria que chegar à Líbia. Presenciamos inclusive manifestações até na Arábia Sauditas, todas fortemente reprimidas.

O Kadafi que vemos hoje nada tem a ver com o Kadafi de 1969. Aquele jovem coronel nasserista que se levantou contra a monarquia pró-inglesa e americana do rei Idris em 1969. Durante bom tempo, o “Coronel” foi referência entre setores progressistas em várias partes do mundo, em função de seus apoios – é bem verdade que bem heterodoxos – a várias entidades e entes políticos em muitos luares no mundo, em especial nos países do chamado terceiro mundo.

No entanto, Kadafi não é mais o mesmo. A data certa quando isso começou a ocorrer é estimada por volta de 2002. Foi como se ele tivesse dado um giro de 180 graus e mudado radicalmente suas posições. Até empresas de marketing especializadas em melhorar imagens pessoais foram contratadas para agenciar viagens e um roteiro determinado politicamente para melhorar o leque de relações com outros países e potências, em especial as imperialistas, como Estados Unidos, França e Inglaterra.

Assim foi feito. Mas, as concessões feitas por Kadafi foram profundas. Ocorreram, em especial, na esfera econômica. O modelo de capitalismo financeiro foi implantado na Líbia. Empresas foram privatizadas. Ele mesmo promoveu com seu governo, certo desmonte – ainda não de todo concluído – do estado de bem estar social.

Seu grande objetivo seria tirar o nome de seu país da lista do Departamento de Estado Norte-Americano que mencionava a Líbia como sendo um “estado bandido”, ou “terrorista” como insiste em dizer a grande mídia ocidental. Kadafi queria sair dessa lista nefasta, que ainda têm países como a Síria, a República Popular da Coreia e o Irã, o grande demônio ocidental.

A retirada dessa lista deu-se ainda no governo de George W. Bush. Antes de Obama assumir. Kadafi pagou um elevado preço por isso. Literalmente. Aceitou indenizar pelo estado líbio, as quase 500 famílias que morreram com a queda do Jumbo 747 da Pan Am em 1988 na cidade de Lockerbee na Irlanda. Deu dois milhões de dólares para cada uma dessas famílias, gastando – ou investindo, dependendo do ponto de vista – quase cem milhões de dólares com esse acordo. Foi como se confessasse publicamente que era mesmo verdade que a Líbia havia mesmo patrocinado esse atentado terrorista.

Kadafi foi recebido nos palácios do Eliseu em Paris, em Downing Street em Londres e com tapetes vermelhos em Washington. Teve a ilusão de que poderia vir a ser o queridinho do Ocidente. Até Israel ficou contente com essa mudança de comportamento. Entregou o governo de seu país aos seus filhos. Suspeita-se de que suas contas bancárias estejam abarrotadas com os bilhões de dólares desviados. Esta no poder há 42 anos e organizava a “transição” para seus filhos continuarem a sua “obra”.

Ainda assim e nem por isso, deveríamos apoiar os tais “rebeldes” de Benghazi. Textos e documentos que circulam amplamente na Internet indicam que esse “levante” da região petrolífera da Cirenáica – antiga província otomana que se unificou com a Tripolitânia e uma terceira em 1911 para formar a Líbia, controlada depois pelos italianos, davam conta de que vinham sendo preparados desde novembro de 2010. Essa região sempre foi o grande “sonho de consumo” dos ocidentais. Ali esta a grande parte do petróleo líbio.

Não se pode confiar nenhum pouco nessa “oposição líbia”. Estes “líderes” possuem escritório de “representação” em Washington. Restabeleceram a bandeira da monarquia do rei Idris derrubado em 1969. Nunca tiveram expressão política nenhuma internamente. Imploraram para o Ocidente bombardear seu próprio país. Como é possível apoiar “rebeldes” que clamam para países imperiais atacarem o seu próprio povo?

Para surpresa de uma grande parte dos que estudam OM, no dia 17 de março, uma quinta-feira, pois nem pautado estava, o CS da ONU aprovou por 10 votos a favor contra cinco abstenções, a Resolução 1.973 que autoriza a ONU criar uma zona non-fly (exclusão aerea). Estranhamos a posição do Líbano e da África do Sul que votaram com o império americano. Se tal resolução tivesse tido apenas oito votos à favor do total de 15 membros presentes, teria sido rejeitada, mesmo sem o veto da Rússia e da China que, como o Brasil com a Índia e Alemanha, se abstiveram na posição.

A grande mídia propagou a ideia de que essa decisão do CS/ONU deu-se a pedido da Liga dos Estados Árabes. Também aqui uma grande mentira. No dia 12 de março, reunida na cidade do Cairo, de fato, a Liga se reuniu. É uma entidade que representa os países árabes e foi fundada nessa mesma cidade em 1945. Tem 22 os países membros (a Palestina, mesmo não sendo reconhecida como país pela ONU, tem direito a voto). Para que uma reunião tenha quorum mínimo para deliberar, é preciso a presença de 11 países pelo menos. E nessa reunião tinha exatamente isso. No entanto, a votação deu-se por nove votos a dois (Argélia e Síria posicionaram-se contra o pedido de Zona de Exclusão Aerea). Isso foi escondido pela grande imprensa. Assim, Obama agradeceu (sic) esse “pedido” dos árabes e começou a preparar a sua Resolução no CS/ONU. Junto com Sarkozy da França, em 48 horas, iniciaram os bombardeios.

Essa Liga dos Estados Árabes está completamente desmoralizada. Não representa mais nada. Todos os seus 22 países membros estão com a sua representatividade e com o poder de seus governantes completamente contestados. Alguns já foram derrubados e seguem “representando” o país, como é o caso do Egito e da Tunísia. O chefe desse fórum, Amr Moussa é um mubaraquista roxo, tendo abandonado o ditador apenas nos últimos dias antes de sua queda. E ainda quer ser presidente do Egito nas próximas eleições.

No entanto, na reunião de votação da Resolução, as coisas não saíram como planejado. A autorização da ONU foi para usar “todos os meios” – leia-se armamentos pesados inclusive – mas nunca para matar indistintamente civis como vem ocorrendo. A posição do governo brasileiro foi correta, quando se absteve e levou os BRICs a fazerem o mesmo mais a Alemanha. Não poderíamos nos envolver nessa guerra, que não nos pertence. Cabe ao povo líbio decidir sobre seu destino. Correto ainda foi a decisão da presidente Dilma em pedir um imediato cessar fogo. Mas, criticamos o ministro Patriota que pediu a “saída” de Kadafi. Isso se configura como ingerência nos assuntos internos da Líbia e fere a soberania e autodeterminação dos povos. Não é essa a tradição de nossa diplomacia.

Não podemos fazer análises maniqueístas do tipo “ou estamos contra ou a favor de Kadafi”. Nem apoiar Kadafi significa ser contra o imperialismo norte-americano, nem ser contra ele significa apoiar o movimento rebelde. Os líbios devem decidir seu destino. O que esta em jogo ali é o controle do petróleo líbio. Daremos nosso apoio e nossa solidariedade ao povo da Líbia e levantaremos nossas vozes contra os ataques imperialistas ao país.

Parcelas equivocadas da esquerda brasileira e em especial alguns partidos comunistas europeus, somam suas vozes contra Kadafi abertamente e apoiam os tais rebeldes. Aliás, com mais de 21 dias de bombardeios incessante, os tais revoltosos não conseguem avançar. Como a Resolução 1.973 da ONU não autoriza invasões por terra com tropas de infantaria, parece, ao que tudo indica, estar havendo certo “empate” técnico nesse conflito. Chega-nos a informação de que membros dos serviços secretos inglês, francês e a CIA já desembarcaram em território líbio e estão orientando os tais “comandantes rebeldes”.

Os EUA continuam a usar a política do canhão. Agora ela vem travestida de “ajuda humanitária”. Se os EUA estivessem mesmo preocupados com um povo que vem sendo massacrado por um governo, deveriam estar neste momento bombardeando sem dó o Estado de Israel. Não há estado no mundo mais terrorista do que Israel e não há estado no mundo que mais massacra um povo sob ocupação como os sionistas que ocupam o governo israelense. Isso é hipocrisia pura! Política de dois pesos e duas medidas.

A guerra contra a Líbia é a 1ª do chamado AFRICOM – African Commander, que fica sediado em Stutgard na Alemanha. Ele é comandado pelo general norte-americano Carter Ham. Essa estrutura é parte do Comando Unificado das Forças Armadas dos EUA, composta por seis frotas navais operacionais em todo o mundo, com 11 porta-aviões nucleares, quatro mil aviões caças e quatro milhões de homens na ativa.

Temos observado, como mais uma prova da política norte-americana de “dois pesos, duas medidas”, que quando os governos árabes são aliados incondicionais de Washington, não importando se são monarquias fascistas ou ditaduras republicanas, Obama pede “alteração de regime”, mas quando se afastam um pouco dos EUA, como a Líbia agora, Obama e sua hilária secretária de Estado defendem uma “mudança de redime”.

Obama tem dito que essa é uma “operação militar por tempo limitado”. Puro jogo de palavras. Essa é uma guerra! Um massacre! É preciso dizer que essa é a 3ª guerra contra países muçulmanos que Obama se mete (Afeganistão, Iraque e Líbia). A despeito do seu famoso discurso do Cairo de julho de 2009, dirigido aos muçulmanos do mundo inteiro.

Estaríamos nós presenciando uma nova Cruzada Cristã contra o Islã? Esperemos que isso não ocorra sob pena das coisas radicalizarem-se ainda mais em várias partes do mundo e não só no Oriente Médio árabe.

O que se previu faz três anos, quando os estatutos da OTAN foram modificados, autorizando que esta organização atuasse fora da Europa, se dizia na época que isso seria para atacar países “rebeldes” em qualquer parte do mundo. Isso hoje se confirma plenamente. Tenta-se agora fazer com que a guerra contra a Líbia seja uma “guerra da OTAN”.

O que temos percebido é uma profunda divisão tanto entre os países árabes como nos governos europeus. A resolução da ONU vem sendo desrespeitada completamente. O objetivo claro é apoiar os tais “rebeldes” do leste para rapidamente instaurar um “governo provisório”, que seria reconhecido por boa parte do mundo. E a partir desse momento, tomar conta completamente das imensas reservas petrolíferas estatais da Líbia.

Como diz meu colega sociólogo James Petras, um dos maiores intelectuais da atualidade, a desculpa da trinca Obama-Cameron-Sarkozy sobre os motivos pelos quais os insurgentes não avançam em direção à Trípoli, é de que “os rebeldes estão menos armados”. Pura balela. Os armamentos à disposição dos insurgentes são tão ou até mais sofisticados que os do exército líbio. Nunca se viu na história moderna um grupo de insurgente receber tão forte apoio material e militar como essa turma do tal Conselho Nacional Líbio, eufemismo para poderem ser reconhecidos como governo “legítimo” da Líbia – de fato, a França já se apressou em reconhecer essa gente e promoveram em Londres inclusive, uma “Conferência” para ver formas de assaltar ainda mais o país e o petróleo líbio. Essa gente é herdeira da antiga Frente Nacional de Salvação da Líbia, amplamente financiada pela CIA e pela Casa de Saud, na Arábia Saudita.

Por isso, só a luta do povo líbio, de forma soberana, pode decidir os destinos de seu país.

* Sociólogo, Professor, Escritor e Arabista. Membro da Academia de Altos Estudos Ibero-Árabe de Lisboa e Diretor do Instituto Jerusalém do Brasil. Colunista de Oriente Médio do Portal da Fundação Maurício Grabois – FMG. Colaborador da Revista Sociologia da Editora Escala. E-mail: lejeunemgxc@uol.com.br. Escrito em 8/4/2011.