A Federação Nacional dos Médicos entrevista o sociólogo, escritor e professor Lejeune Mirhan sobre os últimos episódios que envolvem a categoria médica no país. Também sindicalista de profissão liberal, o Prof. Lejeune foi vice-presidente da CNPL entre 2002 e 2005 e presidiu a Federação Nacional dos Sociólogos entre 1996 e 2002, além de presidente do Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo entre 2007 e 2010. Tem seis livros publicados nas áreas de Sociologia e Política Internacional (Oriente Médio). Foi docente das disciplina de Sociologia e Ciência Política na Universidade Metodista de Piracicaba – Unimep por 20 anos.
Estuda o sindicalismo de categoria profissional há mais de 15 anos, tendo publicado diversos artigos nesse tema, tendo apresentado um trabalho no Congresso Mundial das Profissões Liberais em Paris em 2003. Tem acompanhado a questão da luta pela Lei do Ato Médico desde o início, vetado pela presidente Dilma Roussef e mais recentemente o Programa “Mais Médicos”.
Concedeu esta entrevista ao jornal da FENAM por e-mail, que publicamos a seguir.
Fenam – A crise atual da saúde brasileira parece recair em apenas uma categoria, a médica. Como o Senhor enxerga esse quadro?
Lejeune Mirhan – Isso não é novidade, pelo menos para nós professores. É histórico no Brasil, os governos tanto o federal – antes de 2002 pelo menos – e os governos estaduais e municipais, afirmarem que a crise na educação os culpados são os professores. Tanto que acabam propondo medidas que recaem sempre e quase tão somente na categoria docente. Não se abrem concursos, não se melhoram os salários, não se investe em condições educacionais e infraestrutura.
Agora vemos esse mesmo filme acontecer com a categoria dos médicos. Aliás, uma das mais antigas profissões que a humanidade conhece, ao lado dos arquitetos (engenheiros) na antiguidade clássica, dos farmacêuticos – manipulador de medicamentos e alquimistas da Idade Média – e dos advogados (antigos tribunos).
Temos dito que é fato que a saúde hoje não se faz só com médicos neste país e em qualquer lugar do mundo. No entanto sem médicos não temos saúde. Não vejo a quem recorrer quando estamos doentes, por mais que as outras profissões da saúde tenham desenvolvido saberes científicos antes privativos dos médicos, mas, no essencial os médicos detém o conhecimento fundamental para nos ajudar nos processos de cura, de terapia, de recuperação, com seu diagnóstico e prescrições respectivas para todos os casos.
De todas as profissões de nível superior, é a que têm o curso mais prolongado – seis anos – e ainda assim, é preciso uma residência médica de pelo menos mais três anos. Ou seja, não se formam médicos na atualidade, no estágio atual do desenvolvimento da ciência médica, com menos de nove anos de estudos em tempo integral.
A crise no setor da saúde no Brasil é crônica e de subfinanciamento. Só para termos uma ideia disso, o orçamento do Ministério da Saúde é de $84 bilhões de reais para este ano de 2013 e os planos de saúde privados no país faturaram em 2012,$95 bilhões para atender 48 milhões de usuários, ou seja, menos de um quarto da população brasileira. Só para termos um exemplo, o SUS paga hoje aos hospitais conveniados 300 reais por um parto normal, o mesmo preço que um salão de beleza cobra para fazer uma “escova definitiva”. E esse valor não vai para o obstetra, que deve ficar com no máximo um terço disso.
O fim da CPMF imposta pela oposição tucana e demista ao governo Lula no Senado em 2007, retirou algo como 40 bilhões de reais por ano do financiamento da saúde. Foi talvez o maior golpe que o Sistema Único de Saúde de nosso país recebeu desde que foi instituído em 1988 por força da Constituição Federal. No mundo todo, seja nos países de sistema capitalista ou socialista, saúde se faz com recursos e muitos recursos. Essa deve ser a prioridade de um governo. Nosso país é um dos que menos investe em saúde per capita. Por ano estamos – com dados de 2011 – na casa de US477.00 enquanto a Noruega com US$4,859,20 (dados da OMS). Isso perfaz 10,18 vezes mais! Que não nos comparemos com a Noruega, onde a parcela mais elevada do IRPF chega a 50% da renda. Comparemo-nos apenas com Portugal, cujo investimento chega a US$1,681.00 ou ainda assim 3,5 vezes mais ou Argentina com US$969.40 com o dobro do investimento.
Lamento profundamente que neste momento que vivemos um clamor da população por mais direitos – além das grandes conquistas dos últimos dez anos – como saúde, educação, moradia e transporte de maisqualidade, as respostas governamentais e de parte da sociedade acabem colocando os médicos como responsáveis por essa crise, da qual não têm culpa alguma.
Fenam – É verdade mesmo que faltam médicos? Se o Brasil possui médicos suficientes, porque há lugares onde o profissional não vai? Qual seria a melhor proposta? Porque o governo brasileiro não optou por essas “soluções”?
Lejeune Mirhan –Aqui para responder às suas diversas perguntas temos que apresentar alguns dados mais gerais. Ainda que não haja uma recomendação da OMS sobre o número desejável de médicos para cada mil habitantes, não creio que tenhamos falta de médicos no país.
Veja, no caso dos advogados, a OAB optou por aplicar um exame que é um verdadeiro funil com relação ao número de bachareis em ciências jurídicas que se formam anualmente no país. Ou seja, ela não controla a abertura de faculdades, mas controla quantos se tornam advogados pelo exame. O CFM optou em controlar o número de escolas que abrem, ao invés de impor um exame nacional para o exercício profissional. No entanto, a pressão das universidades, mesmo as públicas, para criar escolas de medicina tem sido imensa. Parece que não é completa a Universidade que não possui curso de medicina.
De fato, na média nacional, temos dois médicos por mil habitantes. Ganhamos apenas da Bolívia (1,2 por mil). Os EUA possuem 2,4 por mil, Argentina e Austrália três por mil. Independente desse número, quero dar alguns dados disponíveis. Temos no Brasil hoje 202 cursos de medicina (dos quais 116 particulares, ou 57,42%). A Índia com seis vezes mais habitantes que nós tem 210 escolas. A China tem apenas 150 e os EUA 131. Este ano, segundo dados do MEC, formaremos 18 mil médicos.
A carência de médicos no SUS é real e a população pobre que depende de atendimento básico à saúde sofre com isso. Consultas com especialistas são marcadas com meses de antecedência. Temos registro que 700 municípios não possuem sequer um médico. Isso é inaceitável. A verdade é que temos médicos, mas sua distribuição é completamente desigual pelo território nacional.
Se um curso de medicina custa pela média quatro mil reais por mês, a escola mais nova que passou a operar agora em abril, a São Leopoldo Mandic, famosa pela sua Odontologia, iniciou uma turma de cem alunos cobrando $8,4 mil reais por mês de mensalidade. Isso fora gastos com livros, moradia etc. Quanto deve ser a renda de uma família para despender pelo menos uns 15 mil por mês com filho em faculdade de medicina? Um médico formado por essa escola gostaria de ir trabalhar no interior da Amazônia? O que moveria esse jovem de cerca de 27 anos a sair dos grandes centros, de sua provável confortável clínica para atender doentes no interior do país? É uma situação difícil. Temos condições de exigir desse jovem uma consciência de “classe” se ele nem sequer tem a consciência de “categoria”? Penso que não.
A nossa presidente deu resposta imediata ao clamor popular de junho, ainda que alguns itens precisem ainda de regulamentação e arestas precisam ser aparadas. A questão mais polêmica foi o programa “Mais Médicos”. Tenho visto nas pesquisas que a população apoia o programa com 85% a favor. Estranho não dar 100%. Quem é contra “mais médicos”? Ninguém, ao que eu saiba.
No entanto, há dois problemas graves na proposta da presidente. Um deles – aparentemente recuado, mas que ainda consta da MP nº 621 – é ampliar o curso de medicina para oito anos e depois dos seis, os alunos teriam que ir, como estudantes ainda, para as regiões que o governo determinasse, como “bolsista”, pois ainda não seria um profissional formado.
Criou-se, pelaMedida Provisória (MP nº 621, de 8 de julho de 2013), a função de “médico participante” e “intercambista”, que receberia em torno de dez mil reais por mês por 40 horas de trabalhem unidades do SUS nas cidades participantes do programa. O primeiro problema – dos participantes não serem formados – estaria superado. O segundo é a precariedade do trabalho. Sem registro em carteira, sem direitos, sem FGTS, sem férias e 13º. Isso é inaceitável e vindo de um governo avançado e progressista. Por isso vejo as reações da Fenam, da AMB e do CFM como legítimas. Uma médica no interior que ficasse grávida teria que largar o trabalho e não teria direito à justa licença maternidade. Isso é inaceitável.
Qual a saída então, que o governo não propôs? É preciso criar a carreira médica nacional e federal, mas como carreira de Estado. Temos que igualar os profissionais médicos às carreiras típicas de Estado, como a de diplomatas, polícia federal, auditor do tesouro nacional, juiz e promotor federal. Temos que abrir concursos públicos de provas e títulos para a carreira médica nacional.
Porque nunca faltam juízes, promotores, auditores em qualquer cidade, mesmo nos confins das fronteiras Norte do país? Porque ganham bem, possuem carreira estruturada e, com o tempo, podem ser removidos para centros mais próximos ou mesmo capitais. Juízes de comarcas nos rincões acabam aposentados como desembargadores nas capitais de seus estados. Porque nossa presidente não apresentou essa proposta?
Fiz umas contas simples. Se a presidente tivesse criadodez mil cargos de médicos com salários de juízes federais em início de careira, em torno de $18 mil reais (brutos) para jornadas de 40 horas em dedicação exclusiva. Colocando 50% de encargos e calculando para um ano (12 meses e o 13º salário), sabe quanto o governo federal gastaria? Apenas $3,51 bilhões de reais apenas! E vamos pagar de juros este ano em torno de $240 bilhões de reais!
Porque a presidente não optou por essa solução? Provavelmente porque a correlação de forças ainda não permite. A força do rentismo é imensa em nossa sociedade. Na verdade, precisamos ir mais fundo nessa questão. E dizer com todas as letras: o estado brasileiro está sequestrado pela finança, dominado pelo capital financeiro, que nos obrigada a pagar juros absurdos em detrimento da capacidade do estado de investir e mesmo de criar mais cargos e funções. Se não pagássemos esse absurdo de juros poderíamos ter não só educação de primeira qualidade, mas transporte gratuito como reivindicam com justeza os movimentos pelo passe livre e uma saúde de primeiro mundo.
Hoje o governo federal emprega 635 mil servidores e um percentual em torno de 16% da sua receita com pessoal. É preciso quebrar isso, ampliar, contratar mais servidores que prestem bons serviços à população, alterando a famigerada Lei da Responsabilidade Fiscal. Precisamos de uma Lei de Responsabilidade Social. Precisamos contratar não só médicos, mas dentistas, farmacêuticos, nutricionistas, psicólogos, enfermeiros, fisioterapeutas, assistentes sócias – e sociólogos! – e tantas outras profissões da saúde.
Esse deve ser o centro. Alterar o modelo que só paga juros. Ampliar o percentual que investimos do PIB em infraestrutura, hoje de míseros 18% para pelo menos 25% (a China investe 40% do seu PIB!). É preciso fortalecer o Estado brasileiro, garantindo nossa soberania nacional. Sabemos que aplicamos apenas 4% em saúde e há um movimento que seja pelo menos 10% das chamadas receitas correntes brutas só para a saúde.
Fenam – Com as inscrições baixíssimas no Programa “Mais Médicos”, a solução adotada pelo governo brasileiro foi a de importar quatro mil médicos cubanos. Como o senhor vê isso?
Nunca vi em nenhum pronunciamento das entidades médicas que eles seriam contra a vinda de médicos estrangeiros. Acho que a medicina talvez seja uma das ciências mais internacionalizadas, assim como a profissão de médico. Na Inglaterra – que aliás tem um dos melhores sistemas de saúde do mundo desenvolvido – quase 40% de seu corpo clínico é estrangeiro. Nos EUA um em cada cinco médicos veio de outros países.
Em qualquer lugar do mundo as entidades médicas exigem duas coisas: que os estrangeiros falem a língua de seu povo de forma fluente para interagir com os pacientes e que validem seus diplomas de forma a terem segurança de que suas formações médicas são compatíveis com as normas e procedimentos científicos mundialmente aceitos. Nada mais que isso. E de antemão refuto o pueril argumento que se for validado o diploma ele poderia trabalhar em qualquer lugar. Seria subempregado nos grandes centros, já atulhado de médicos.
De fato, como você afirma em sua pergunta, houve pouca procura de brasileiros pelo programa “Mais Médicos”. Ir para os rincões, sem registro e boas condições de trabalho, atraiu em torno de mil profissionais apenas, para mais de dez mil vagas. Nesse sentido, o governo da presidente Dilma, pressionada pela população que precisa da assistência médica, lançou mão da experiência cubana em saúde pública. Aliás, diga-se de passagem, a melhor saúde de um povo em todo o continente.
A Escola Latino-Americana de Medicina – ELAM, forma milhares de médicos. Não sou especialista para falar sobre o seu currículo. O que sei é que esses médicos e médicas prestam excepcional serviço de medicina e solidariedade a povos e países que precisem de médicos. A presidente adota essa medida como emergencial e acho que as brigadas médicas que estão desembarcando no país serão muito bem recebidos pelo nosso povo, em especial nos rincões que não temos esses profissionais. A pequenina Cuba, mesmo sofrendo o mais odioso bloqueio econômico da maior potência econômica do mundo desde 1962, nos socorre agora com seus médicos.
Não me cabe dar conselhos aos médicos brasileiros e aos sindicatos da base da Fenam. No entanto, se sindicalista fosse, enquanto não abrem os concursos nacionais da carreira médica, eu lutaria para que esses profissionais tivessem direitos assegurados com base na CLT. Isso beneficiaria a todos, brasileiros ou estrangeiros.
Fenam – Qual a opinião do senhor sobre os vetos presidenciais à Lei que regulamenta o exercício daMedicina? Pode se dizer que foi vetado o essencial para o exercício da profissão? O que muda na prática?
Lejeune Mirhan –Esse é um assunto que acompanho desde 2002, quando tomei posse como vice-presidente de uma Confederação de Profissionais Liberais – CNPL que tinha inclusive dois médicos na diretoria. Acompanhei a tramitação entre 2002 e 2005, quando deixei a diretoria. No entanto, de lá para cá acompanho o trabalho cotidiano da FENAM, tendo participado inclusive de vários de seus congressos nacionais até como palestrante. Conheço e visitei vários dos 50 sindicatos da base da entidade, que hoje muito bem representa quase 400 mil médicos no país.
Várias profissõesda saúde, que trabalham nas equipes multidisciplinares, ao longo dos últimos 50 anos tiveram regulamentadas seu exercício profissional. Mais particularmente os farmacêuticos, nutricionistas, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais, enfermeiros entre outros. A cada regulamentação de uma dessas profissões, os médicos foram perdendo certos espaços.
Em 2002, o CFM decidiu apresentar uma proposta que regulamentasse a profissão, em especial que dissesse em detalhes o que seria privativo do médico e o que não seria. Acompanhei quando a Câmara aprovou o Projeto por unanimidade, com apenas três destaques. Quando votados, tais destaques venceram com 75% dos votos. Depois foi ao Senado. Lá tramitou por mais alguns anos. Ao final, foi votado por 79 votos a favor contra apenas um (senador tucano de SP, Aloísio Nunes Ferreira). Depois foi à sanção presidencial.
A presidente Dilma, usando suas prerrogativas constitucionais, vetou vários dispositivos da Lei do Ato Médico. Está no direito dela. No entanto, achei isso um desrespeito ao parlamento brasileiro e às três entidades da categoria médica que atuaram em conjunto por onze longos anos (AMB, Fenam e CFM). Mas, um desses dispositivos vetados, de meu ponto de visto como leigo e alguém de fora da corporação, por assim dizer, foi o que diz que “é privativo do médico diagnosticar e receitar”. Ora, sabemos de várias profissões científicas da área da saúde que gostariam de fazer isso e combateram esses anos todos contra essa regulamentação, principalmente no quesito “diagnosticar e receitar”. Também é da nossa democracia respeitar pontos de vista distintos.
Ocorre que ao vetar claramente o ponto central da regulamentação da profissão do médico abriu-se uma brecha jurídica, caímos em um limbo jurídico de tamanho abismal. Hoje, a rigor, qualquer um pode diagnosticar e receitar no país. Sabemos que isso não ocorrerá, mas muito mais pelas tradições. Hoje, a rigor, não poderemos dizer que a função do médico é “diagnosticar e receitar”. Um verdadeiro paradoxo. Eu lamento essa situação.
Na semana que passou, os vetos foram votados na Câmara e no Senado. Para derrubá-los, teriam que ter maioria nas duas casas. Na Câmara, as entidades médicas conseguiram derrubar o veto com larga margem. Mas, no Senado, faltou apenas um voto. A presidente, preocupada com essa situação, enviou ao Congresso projeto de Lei específico que corrige esse problema. Vamos acompanhar.
Fenam – Fale-nos sobre a MP nº 621/2013, que criou o Programa Mais Médicos, acerca da questão que prolonga a formação do médico e agora torna obrigatória a residência no Sistema Único de Saúde (SUS)? Vale ressaltar o contexto mundial, onde os países estão tendo a tendência de diminuir o tempo de formação.
Lejeune Mirhan –Como você mesmo diz, a tendência mundial vai no sentido oposto. A tendência é reduzir o tempo de formação dos médicos para cinco anos. O volume de informação é imenso e está disponível não só para estudantes de medicina, mas para a população como um todo. Temos até aquele ditado popular que diz “que de médico todos temos um pouco”.
Sou estudioso do mundo árabe. Por conta disso conheço a obra de Ibn Sina, conhecido no Ocidente como Avicena. Ele era um médico persa e islâmico e viveu entre 980 e 1037 no que hoje é o Irã. Era uma época que formávamos cientistas em geral. Ele era médico, mas era também físico, astrônomo, literato e entendia de sociedade e – claro – de teologia.
Há um livro muito bom de Noah Gordon, que é um paramédico estadunidense, cuja tradução – errada no Brasil – ficou com o título “O Físico”, quando deveria ser “O Médico” (The Physician). Ele conta a história de um barbeiro medieval na Europa no início do século XI que queria ser médico de verdade e vai para a Pérsia, em Esfahân se encontra com o maior de todos os médicos, Avicena.
O livro se passa em uma época em que a Europa queimava livros e faria logo depois as suas cruzadas contra os “atrasados” tomaria parte do Oriente Médio e destruiria quase tudo por lá. A passagem que mais me impressiona no livro é quando se menciona que a biblioteca de Esfahân tinha só “cem mil livros”. Para quem ama livros como eu – que moro em uma biblioteca, literalmente – o assistente de Ibn Sina, ao ser indagado porque “só tinham cem mil, se a biblioteca de Bagdá tinha meio milhão”. Ele responde claramente: – Porque nós temos ele! E ai muda o capítulo e Avicena entra em cena.
Esse médico escreveu sua principal obra, Cânone da Medicina, de 14 volumes, publicada em 1020(li alguns trechos apenas). Fala-se entre historiadores médicos que até meados do século XIX foi a principal fonte de conhecimento médico. Hoje, qualquer estudante de 3º semestre de medicina tem conhecimento acumulado equivalente a toda essa enciclopédia.
E o que é pior: ampliar dois anos um curso sem discutir com as escolas que formam médicos não foi adequado. Felizmente, a presidente recuou dessa medida.
Fenam – Para concluir, como o Senhor vê a forma que o governo e a sociedade vêm tratando a categoria médica? Afinal, os médicos cuidam das nossas vidas.
Lejeune Mirhan –Olha, quero aproveitar – como leio muito e gosto demais de literatura internacional – para recomendar a continuidade da trilogia do romancista Noah Gordon, com os belos livros Xamã e A Escolha da Doutora Cole. Ele segue a tradição do médico medieval e seus descendentes. Passando pela sabedoria xamânica do médico cego e pela doutora da atualidade, o pano de fundo é o poder da cura. Tem algo de místico no texto, claro, mas é envolvente. Digo isso e dou o exemplo do filme A Lista de Schindler que muitos devem ter assistido. Em certo momento, o contador da empresa do empresário Oscar Schindler, que salva muitos judeus registrando-os como empregados, diz: “em alguns momentos de nossas vidas temos que ter três tipos de amigos: o médico, o advogado e o contador”. É e verdade. Podemos ter um grande amigo advogado e contador, mas quando ficamos doente, a quem recorremos senão ao médico?
Gosto muito de ficção científica. Quando jovem na década de 1960 assisti a toda a série Cosmos de Carl Sagan a quem também li todos os seus livros, como também os de Arthur Clark, de Isaac Asimov entre outros. Assim como a série Jornada nas Estrelas. Quem não gostaria de ter um aparelho ultramoderno passando em partes de nosso corpo que nos curasse? Todo mundo. Mas, percebam que mesmo nesse mundo – de mil anos à frente! – é um médico que passa o instrumento! Provavelmente outro médico que o desenvolveu. Porque querem tirar esse conhecimento dos médicos? Acho que não conseguirão. Pelo menos não nesta sociedade que vivemos. Quiçá em outra formação econômica onde tudo – inclusive o conhecimento – seria inteiramente socializado. Não antes disso.
Quero dar um testemunho pessoal sobre tudo que li nas redes sociais sobre esse tema. De fato, a categoria médica foi desrespeitada. Mais do que isso, foi aviltada, ofendida. Sigo convicto que não deve recair sobre uma categoria específica a crise profunda de subfinanciamento de nosso sistema de saúde.
Vi comentários que me entristeceram contra médicos, que cobram consultas sem recibo mais baratas, como se fosse privativo de uma categoria sonegar impostos no país. TVs fizeram tocaias em postos de saúde para “provar” que alguns médicos burlam sua jornada, fazendo generalizações para a categoria de atitudes que as entidades médicas condenam. E como se apenas médicos fizessem isso. Como se não tivéssemos maus profissionais em outras categorias.
Entre final de junho e começo de julho, pude ver como a categoria de uma das mais antigas profissões da humanidade foi duplamente atacada. Por aspectos equivocados do Programa “Mais Médicos”, que esperamos sejam corrigidos em breve e com o veto à regulamentação de sua profissão. Não compartilho com posturas e comportamentos equivocados de alguns médicos, seja por suas declarações equivocadas, seja por cartazes que postaram em passeatas. Não acho que esses profissionais refletem o conjunto da categoria. Temos que ganhar a categoria médica para o campo da saúde pública, da defesa do SUS, do atendimento ao povo que necessita de seus cuidados.
Lamento essa situação. Acho que tudo isso será passageiro. Tenho esperança que as coisas vão se ajustar em breve e nossa presidente Dilma vai se reconciliar com a categoria.
Como dizia Sr. Spok do Jornada nas Estrelas, “vida longa e prosperidade aos médicos”. É meu desejo sincero. Que sirvam ao povo e fortaleçam o SUS.