As certezas que tenho sobre a Síria
Lejeune Mirhan *
Na última semana, como nunca antes havíamos visto, na Síria trava-se uma guerra completamente distinta dos campos de batalha: uma guerra de informações. Sem disparar tiros de canhões, mas uma guerra tão ou ainda mais perigosa que a convencional. Fala-se na “mãe de todas as batalhas”. Fala-se em “combates mortais” em Damasco e Aleppo, a segunda maior cidade. Até o Estadão e a Folha enviaram repórteres para apoiar o levante “rebelde”. Não se tem certeza de tantas coisas sobre o futuro deste que é o mais antigo país do mundo árabe. Mas, qualquer que seja o destino do atual presidente, é preciso que deixemos registrado pelo menos algumas certezas.
Até quando o governo Assad resistirá?
Desde março de 2011, na onda do que a grande imprensa vem chamando de “Primavera Árabe” – não gosto e nunca gostei desse termo – também a Síria vem presenciando levantes que pretendem derrubar o seu presidente legitimo e constitucionalmente eleito, o médico Dr. Bashar El Assad. A imprensa nunca o chama dessa forma. Refere-se a ele como “ditador”. E sabemos que a cobertura dessa “grande” imprensa e sua indignação é completamente seletiva. Nunca chamou Hosni Mubarak de ditador do Egito, ainda que ele tenha sido por 30 anos. Sempre foi amigo dos EUA. Tratava-o de “presidente” Mubarak. A mesma coisa com os ditadores depostos pelas massas árabes da Tunísia e Iêmen. Em ambos os casos, até pouco antes de caírem, eram tratados de “presidentes”.
Já publiquei muitos artigos nestes quase um ano e meio de levantes e revoltas na Síria. Apontei, citando estudiosos e analistas internacionais de maior renome, que a situação na Síria em nada tem a ver com a de outros países árabes, cujos levantes são justos. Também já tratamos do fato que o caráter e o conteúdo de classe de um governo e de um estado não são dados apenas pela forma como ele é escolhido. A apologia que se faz ao voto direto é absurda. Ao acaso os governos que emergiram das revoluções russa, em 1917, chinesa em 1949 e cubana em 1959 podem ser tratados de antidemocráticos? Qual o padrão e o parâmetro com que devem ser comparados? Com a democracia burguesa estadunidense?
O que dá o caráter de classe e o conteúdo de um governo e de um estado são as tarefas que ele assume perante o seu povo, perante a maioria de sua população. Seu projeto político, sua plataforma, seu programa de ação. Como ele se posiciona no cenário internacional, ao lado de que países e de que campos políticos ele se coloca.
Quanto a isso nunca restou dúvidas sobre a Síria. É o último governo laico e republicano que restou em todo o Oriente Médio. Uma região completamente dominada pelos Estados Unidos, que fincaram bases em quase todas as monarquias árabes do Golfo Pérsico-Arábico, em especial Kuwait, Arábia Saudita, Bahrein (onde esta baseada a 4ª Frota dos EUA) e Qatar. Onde não conseguia fincar base militar, acabou por invadir, derrubar e assassinar seus presidentes, como foi no caso do Iraque com Saddam Hussein e na Líbia com Muammar Kadafi.
A própria Liga dos Estados Árabes hoje é instrumento tanto dos EUA, quanto das monarquias feudais do Golfo e à serviço do sionismo. E nisso, os norte-americanos não cochilam. Tudo fazem para proteger Israel e essa é a questão central. Além da ajuda anual de três bilhões de dólares que faz parte do orçamento aprovado pelo Congresso dos EUA, diversas outras formas de ajuda e proteção são ofertadas pela potência imperial aos sionistas. Por isso relutaram até o último dia para abrir mão de seu histórico aliado no Egito. Praticamente morreram abraçados ao ditador Mubarak. Chegaram a fazer acordos inconfessáveis até com a Irmandade Muçulmana, antes execrada, mas agora aliada dos EUA, para que os nasseristas não ganhassem as eleições no Egito (acabaram ficando em terceiro lugar no primeiro turno).
Agora, é preciso ocupar a Síria. É preciso mudar o regime de qualquer forma. E não se trata aqui de defender a democracia. Esse país árabe de 22 milhões de habitantes, mesmo sem ter petróleo algum, é o maior incômodo para a política estadunidense na região e para Israel. Uma pedra no sapato do imperialismo. O governo Bashar em um ano legalizou dezenas de partidos políticos. Televisões e jornais funcionam amplamente, sem nenhuma censura. Uma nova constituição foi escrita, mantendo a laicidade do Estado sírio. E a população foi ás urnas referendá-la com quase 90% de aprovação, mesmo com o boicote da oposição armada (há outra oposição que participa da política, da mesa nacional de diálogo, que legalizou seus partidos e que é contra o levante armado para derrubar o governo e nunca pede que potências estrangeiras ataquem o país). E, finalmente, um novo parlamento foi eleito e já tomou posse em fevereiro, com 12 partidos que elegeram parlamentares. Eleições limpas, diretas, democráticas.
Que mais querem os EUA? Querem tirar o presidente Bashar. Mas não é porque ele é um “ditador”. Os norte-americanos têm amigos ditadores em todo o mundo. Bashar incomoda exatamente por isso: ele não é amigo do império do Norte. Ao contrário. Ele forma com outro campo, com outro eixo, a que o Departamento de Estado chama de “Eixo do Mal” (sic). Esse campo combate a ocupação estadunidense do Oriente Médio. Esse campo defende a Palestina para os palestinos e isso gera profundas contradições com os sionistas e os israelenses. Esse campo faz aliança com o Irã, o maior demônio que a mídia inventou nos dias atuais. Nesse eixo ainda tem espaço para o Líbano e o Iraque. Os grupos Hezbolláh, a quem a imprensa chama de “terrorista” (sic) e a maior parte dos grupos da resistência palestina.
Mas, mais do que isso, a Síria hoje soma com a China e a Rússia. Essas duas potências, com assento no CS da ONU, já vetaram três resoluções dede 4 de fevereiro, que tentavam impor mais sanções à Síria, mas que, na prática, abririam espaço para uma intervenção armada externa, até com forças da OTAN.
Ainda assim, fica a pergunta: até quando o governo do presidente da Síria vai resistir? Aqui, rigorosamente, é uma pergunta que poucos têm a resposta. Poderia resistir ainda por muito tempo, a depender de fatores diversos que veremos a seguir. Ou, acabar caindo, cedendo lugar para novas forças e grupos políticos ascenderem ao poder central do país, levando a Síria a um rumo completamente imprevisível no momento atual.
Que certezas nos restam sobre a Síria?
Se por um lado não há certezas sobre o destino do governo e do presidente Bashar Al Assad, quais certezas nos restam nesse momento crítico que vivemos? Resumo a seguir as minhas principais certezas pessoais.
Este artigo não é conclusivo. De fato, quando lemos as páginas internacionais comprometidas na luta anti-imperialista, entendemos a real situação na Síria, o que lá esta em jogo, quais forças estão em disputa na batalha que se trava. No campo das ideias e no chão sírio.
Pessoalmente, sinto falta de uma reação da verdadeira esquerda no país. Em solidariedade ao povo sírio. Em defesa da soberania do país. Não se trata aqui de apoiar e defender o governo. Trata-se de defender que a solução para a Síria deve ser encontrada pelos sírios e não pelas potências estrangeiras. Deveríamos pensar em organizar um ato que diga alto e em bom som: Fora Imperialismo da síria e do Oriente Médio! OTAN, Tirem suas patas da Síria!
* Sociólogo, escritor e arabista. Foi professor de Sociologia da Unimep entre 1986 e 2006. Presidiu o Sindicato dos Sociólogos de SP de 2007 a 2010. E-mail: lejeunemgxc@uol.com.br