Planejava escrever mais de um artigo semanal sobre o Oriente Médio (OM). Mas, tarefas outras me impediram. Mas mais do que isso, o rigor acadêmico, o excesso de leituras, certo perfeccionismo que me é peculiar, acabaram me impossibilitando. Acho que em três dias li pelo menos 50 artigos de diversas naturezas sobre o OM, todos anotados. Surge agora este segundo artigo, ao qual espero críticas de todas as ordens.
As ruas seguem tomadas
No momento em que escrevemos, as ruas e a Praça da Liberdade no Cairo seguem ocupadas, com barricadas, barracas espalhadas, controladas por comitês populares e revolucionários. Após 16 dias do levante de 25 de janeiro, muitos analistas e estudiosos achavam que o ânimo iria arrefecer. Que nada. Cresce a cada dia.
No entanto, como observador atento da cena do OM nos últimos 30 anos – que coincide com a ditadura de Mubarak – temos que ter uma certeza neste momento: a luta não é propriamente contra o ditador fantoche e seus apaniguados, mas contra o império norte-americano. Essa é a questão central. Trava-se ainda uma luta contra o modelo econômico neoliberal, em decadência – mas ainda forte na maior parte do mundo – que empobreceu imensamente as massas árabes e egípcias.
O levante revolucionário egípcio decorre de vários fatores. O principal deles é o esgotamento do modelo de completa subserviência de um ditador árabe aos interesses de potências estrangeiras – EUA, União Europeia e, principalmente, Israel.
É preciso registrar que, além da juventude árabe que esta sim na linha de frente, os sindicatos e os operários egípcios também estão nas barricadas. Agora mesmo os metalúrgicos que trabalham no estratégico Canal de Suez decretaram uma greve geral. Uma nova central sindical foi criada, passando por cima da oficialista e pelega ETUF (Egipcian Trade Union Federation). No bojo das lutas, os sindicatos dos profissionais liberais, que sempre foram fortes no Egito e na Tunísia, tomam a linha de frente do movimento, em especial médicos, engenheiros e advogados.são a principal força do movimento.
Papel do Egito
Desnecessário dizer que esse é o maior país árabe, com quase 90 milhões de habitantes. Ele é parceiro estratégico dos Estados Unidos. Mas o é da União Europeia e mesmo da China e Rússia. Mas, fundamentalmente, o Cairo faz o jogo do governo sionista de Israel. Desde pelo menos os acordos de paz de Camp David de 1979, patrocinados por Jimmy Carter e assinados por Anwar El Sadat e Menachem Beguin – posteriormente prêmio Nobel da Paz.
Essa parceria estratégica serve para asfixiar – ou pelo menos tentar asfixiar – o grupo revolucionário Hamás, que controla a Faixa de Gaza, bem como aos 1,5 milhão de palestinos que vivem nisso que é considerada a maior prisão aberta do mundo. Quando Israel fecha as fronteiras de Gaza, o Egito também colabora para isso, fechando a fronteira na cidade de Rafah. Isso asfixia os palestinos, impede a entrada de materiais de construção, medicamentos e alimentos. Os preços disparam, pois entram por túneis clandestinos.
Mubarak não deixará o poder de forma tranquila e pacífica, ordeira como querem seus aliados. A nomeação de um vice, depois de 29 anos é emblemático. Omar Suleiman, conhecido torturador e serviçal dos EUA e aliados, foi encarregado de tentar conduzir a transição. Concede entrevistas, garante a neutralidade das forças armadas e dialoga, inclusive, com a Fraternidade Muçulmana.
Nunca nos esqueçamos que o Egito tem a soberania do Canal de Suez. Parte fundamental de suas receitas nacionais vem das taxas cobradas pela travessia desse Canal. Por dia passam quase dois milhões de barris de petróleo, levados à Europa e aos EUA em imensos navios petroleiros. Isso não pode ser interrompido. Além do que, é preciso um grande país árabe para proteger os interesses de Israel.
Nos trinta anos em que Hosni governou a ferro e fogo o Egito, como títere dos norte-americanos, trouxe como consequência para o povo egípcio as piores condições de vida e trabalho e nenhuma democracia. Os partidos políticos são consentidos, só podem se candidatar quem o partido oficial, o Nacional Democrático de Mubarak permitir. A oposição consentida nunca fez sequer 20% dos deputados e 5% das eleições presidenciais nos últimos trinta anos.
Mubarak estagnou o maior país árabe nas três últimas décadas. Como diz Jean Pierre Lehman (OESP de 6/2/11, página A22), não há “regionalização” no OM e nem no Norte da África. Segundo dados do PNUD de 2001, há três carências básicas no Egito: de liberdade, de conhecimento e de poder feminino. No caso cultural, dados estarrecedores mostram que na década de 1960, editavam-se pelo menos três mil títulos no Egito e no ano passado, apenas 300 foram publicados (apenas 10%).
Nunca é demais lembrar que, com apoio expresso de Hosni Mubarak, Israel invadiu, nos últimos trinta anos, pelo menos cinco vezes o Líbano (na sua fronteira Norte). Como registra Ramez Maalouf, em 1982, Beirute foi a única capital árabe cercada, ocupada e quase destruída por Israel, que acabou matando e ajudando a matar mais de 25 mil libaneses.
A questão do Islã Político
Há décadas, como nos esclarece Pepe Escobar, que se coloca um sinal de igualdade entre democracia árabe = fundamentalismo islâmico. Para Israel, a igualdade que se coloca é de outra natureza. Fundamentalismo islâmico = terrorismo. Logo, democracia árabe seria igual a terrorismo. Ledo engano. Senão vejamos.
O grupo mais temido, a Irmandade Muçulmana (alguns preferem traduzir como Fraternidade) há décadas renunciou à violência e não oferece medo algum aos interesses dos ocidentais e suas potências. Diversos relatos nos informam que desde a década de 1950 houve tentativas de acordos e mesmo cooptações de líderes desse grupo político, que se mantém discreto na liderança das atuais manifestações de rua.
Na verdade, diversos autores têm claro uma coisa: o que Washington hoje teme não é uma revolução islâmica como a ocorrida no Irã em 1979. Eles sabem que não ocorrerá daquela forma. Praticamente não existe essa possibilidade. O que mais se teme hoje no Ocidente é o nacionalismo árabe, que sempre teve, inclusive, tendências socialistas (não marxistas). Esse nacionalismo secular sempre se colocou contra os acordos de Camp David. Para Chomsky, considerado um dos maiores intelectuais estadunidense da atualidade, Washington não aceitaria a soberania e a independência tanto do Egito como de qualquer país árabe, que pudesse se contrapor à Israel e aos seus interesses econômicos e energéticos na região.
Há um centro de disputa hoje na revolução árabe em curso. Nem é tanto quem a dirige, mas qual seu conteúdo, suas metas, suas tarefas e seus objetivos. Os americanos procuram, o tempo todo, controlar esse processo de transição. Sequestrar a revolução como se tem dito. Por isso não abandonaram Mubarak nos primeiros dias e ainda tentam achar uma solução negociada para a sua saída honrosa. Ele apega-se cada vez mais ao poder. Anuncia que fica até setembro, mas não se candidata e diz que seu filho, Gamal Mubarak, também não se candidatará. As massas rejeitam qualquer negociação com o ditador.
Mas, aqui entra o fator Omar Suleiman, o vice torturador (estima-se que trinta mil foram presos, torturados e uma parte foi, inclusive, mortas nas masmorras do regime). Ele poderia ter o apoio de parte do exército e de setores mais moderados do islamismo e contaria com a simpatia dos EUA. Seguramente, o Egito poderia não ser o mesmo subserviente à Washington, mas sob o governo desse general os interesses americanos e israelense poderiam ficar preservados. O apelido que as ruas árabes concederam a esse general foi “Sheik Al-Tortura”.
Vejam como pensa o professor Robert Springborg, da Escola de Pós-Graduação da marinha dos EUA: “os militares constituirão a sucessão. O Ocidente está trabalhando para isso. Estamos trabalhando em íntima união com os militares egípcios, para garantir que nada se altere no papel dominante dos militares na sociedade egípcia, na política e na economia”. Como diz meu colega e amigo sociólogo argentino, Atílio Borón, lembrando o escritor italiano Lampedusa, em seu Il Gatopardo (O Leopardo), tudo precisa mudar para que fique como esta!
Os grupos Hamás (palestino) e Hezbolláh (libanês), são considerados “radicais” e “terroristas” pelo Departamento de Estado dos EUA e pela União Europeia (o Brasil não os classifica assim). E por quê? Simplesmente porque lutam contra Israel e os Estado Unidos. O Hezbolláh em particular defende um Líbano independente e soberano e de armas em punho, luta para expulsar Israel de suas terras.
Há uma profunda diferença do Islã xiita e Islã sunita. Os sunitas sempre foram mais plurais em suas concepções. Sofreram mais influência do iluminismo europeu, que pregou, desde a revolução francesa, a separação da religião do estado. Para os xiitas, deus governa os seres humanos através da estrutura religiosa, enquanto que para os sunitas as pessoas governam e o governo pertence ao povo.
Na semana que passou, o líder religioso máximo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, no discurso da sexta-feira (dia 4/2/11) conclamou os egípcios a fazerem a sua revolução islâmica. Ficou falando sozinho, sem eco algum nas massas árabes, até porque, voltamos a insistir, não há indício algum de que a revolução em curso seja ou venha a ser islâmica. Até a Fraternidade Muçulmana teve que rejeitar esse discurso. Eles reafirmaram que a revolução em curso é nacional e patriótica e mesmo secular.
As implicações em Israel
Também não devemos ter ilusões. A luta dessa revolução árabe é contra os Estados Unidos, mas é fundamentalmente contra Israel. Trata-se de preservar – ou não – os acordos de paz de 1979. E Israel – não temos como não reconhecer isso – encontra-se isolada e com os nervos à flor da pele. Senão vejamos.
A diplomacia israelense – por incompetência ou convicção mesmo, sabe-se lá – ainda continua achando que somente Mubarak e seu círculo íntimo poderia promover o processo de transição pacífica do regime e ele estaria comprometido com a paz. Nesse sentido, diversos parceiros históricos de Israel, como o ex-primeiro Ministro da Inglaterra, Tony Blair, defenderam que Mubarak continue no poder. Estranha-nos a posição nesse sentido de Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina. Não é à toa, como diz Luiz Antônio Costa (Carta Capital de 9/2/11), que a direita americana critica Obama por abandonar Mubarak, aliado que consideram histórico. Veem o abandono do aliado como uma péssima sinalização que os EUA enviam a outros governos árabes amigos de Washington.
Acerta Ury Avnery, um dos maiores escritores israelense e do Bloco de Paz em Israel (Gush Shalom), de quem sou leitor fidelíssimo, quando diz “estamos passando por um evento geológico. Um terremoto de vastíssimas dimensões, que esta mudando a paisagem no OM. Montanhas viram vales, ilhas emergem do mar e vulcões cobrem a terra de lava”. E ele esta certo, na descrição com suas poéticas palavras da revolução árabe em curso.
Não há como Israel não se sentir cercada, isolada e com nervos à flor da pela. De forma resumida, eu daria pelo menos os seguintes motivos para isso:
Plataforma da Oposição e Nomes da Transição
Circulam pela Internet, sites, blogs, revistas especializadas, dezenas de propostas de uma possível plataforma que seria o melhor, do ponto de vista das massas árabes, que vem sendo discutida amplamente em círculos diversos, sejam partidos opositores, entre os jovens árabes e suas entidades e nas mesquitas, meios acadêmicos e sindicais. Faço a seguir, para nossos leitores, um resumo dos cinco e mais importantes desses pontos reivindicados:
Como já registramos em artigo anterior, não há lideranças claras e ostensivas do movimento revolucionário, até para que se preservem da repressão brutal. No entanto, conversações que vem ocorrendo falam em um comitê interino de sábios e intelectuais, em sua maioria sem vinculações com religiões, de até 40 nomes, que pudesse fazer a pequenas reformas constitucionais para que se possam proceder às eleições imediatas. Diversos artigos da atual constituição impedem o registro de determinados partidos e/ou candidaturas.
Apenas para efeitos de registro, transcrevo alguns desses nomes que vêm sendo veiculados e seus respectivos currículos e denominações:
Bem, estes seriam alguns dos nomes para a equipe de transição que pode ser constituída a qualquer momento no Cairo, com vistas à democratização geral do país.
Algumas conclusões
As coisas no OM estão acontecendo com tamanha velocidade que algumas opiniões e/ou propostas ficam completamente caducas de um dia para outro. No entanto, como estudioso e analista internacional, quero, à guisa de auxiliar nossos leitores em uma interpretação a mais próxima da realidade da região, apresentar aqui minhas conclusões para este momento histórico que vivemos:
De minha parte, tal qual anunciei na minha primeira entrevista depois da crise para a rádio CBN que concedi em 30 de janeiro, prevejo o retorno, ainda que não com a força dos anos 1950 e 1960, do nacionalismo árabe, do pan-arabismo nasserista, patriótico, laico, que terá imensos efeitos em todos os países árabes. A conferir e em bem pouco tempo.
* Sociólogo, Professor, Escritor e Arabista. Membro da Academia de Altos Estudos Ibero-Árabe de Lisboa e da International Sociological Association e colunista da Revista Sociologia da Editora Escala. Escrito em 10/02/2001