O mundo assiste hoje a três anos e meio de ocupação do Iraque pelas tropas americanas e seus aliados ingleses, auxiliados secundariamente por soldados de outras 22 nações. Desde o dia 19 de março de 2003, todo o país, especialmente a sua capital, a milenar cidade de Bagdá, assistiu ao maior despejo de bombas que uma cidade havia visto desde o final da Segunda Guerra Mundial em 1945. Milhares de civis mortos e praticamente toda a infra-estrutura do país foi destruída, mais uma vez – como na guerra ocorrida em janeiro de 1991. A ocupação militar do país necessitou de pouco mais de 20 dias. Bagdá caiu em 9 de abril. É preciso que façamos algumas análises e estudos da situação, para que possamos entender as conseqüências desse processo de guerra.
Um breve balanço
Não existem números precisos sobre mortos do lado iraquiano. Do lado americano, ainda que o número possa ser questionável, até o início do mês de outubro, 2.733 soldados estadunidenses já foram mortos em combate e um número até três vezes maior foi ferido. Sem falar nos mortos de outras nacionalidades. No total, são quase 3,5 mil soldados estrangeiros mortos. Entre os iraquianos, dependendo da fonte que é utilizada, fala-se em até 150 mil mortos civis e militares. Um recente artigo em revista de medicina, calcula esse número de mortos em mais de 600 mil iraquianos. Uma das páginas na Internet mais respeitadas sobre a guerra do Iraque é o Projeto de Contagem de Corpos do Iraque (ou na sigla em inglês Iraq Body Count Project, cujo endereço é http://www.iraqbodycount.net/). Os dados mais atuais dessa entidade revelam que até 44 mil civis iraquianos foram mortos nesses três anos e meio de ocupação. A cifra é muito maior. Eles trabalham com dados que são reportados oficialmente, que são registrados, que são comunicados. A média de falecimentos diários no primeiro ano de ocupação foi de 20 pessoas, elevando-se para 31 no segundo e neste terceiro, 36. Com o recrudescimento da violência dos últimos tempos, as mortes vêm chegando a quase 60 por dia. Dados também recentes mostram que pelo menos quatro mil policiais iraquianos foram mortos em conflito.
Nesse período, a mentira contada tantas vezes por George Bush de que a invasão seria para descobrir os arsenais de armas de destruição em massa do Iraque foi sendo cada vez mais desmascarada. Nada foi encontrado, o que já era sabido desde os preparativos da ocupação, em setembro de 2002. Isso porque Saddam Hussein, a pedido da ONU, tinha interrompido há anos as pesquisas nesse campo – diferentemente dos americanos, que são os maiores fornecedores desse tipo de armamento.
Os americanos deram aos iraquianos, nesses três anos e meio de ocupação, um governo fantoche. Encenaram um arremedo de democracia, propalando ao mundo inteiro que realizaram no Iraque eleições “livres”. Uma farsa, pois boa parte dos partidos não pôde concorrer, pois estava na oposição e combatendo a ocupação de seu país. Parte dos iraquianos, especialmente xiitas, optou por aceitar a ocupação sem resistência para realizar seu antigo sonho: chegar ao poder. Esses viveram tempos difíceis por 24 anos, desde 1979, quando o grupo de Saddam Hussein, um sunita, assumiu o poder no país. Nesse período, desencadeou-se um conflito sectário e religioso, entre xiitas e sunitas, mas que vimos descaracterizando como tal, pois se trata na verdade de um conflito político entre correntes de opinião que fizeram acordos tácitos com os estadunidenses, aceitando de alguma forma a ocupação, e forças que não a aceitam em hipótese alguma. De qualquer forma, cresce hoje o clamor para que os EUA marquem uma data de saída do Iraque.
A destruição da infra-estrutura do país foi significativa. Só para termos uma idéia da extensão do retrocesso, vejamos o caso do fornecimento de energia elétrica. Bagdá, que quase nunca tinha problema de fornecimento de energia para as suas residências, hoje só tem luz elétrica cerca de oito horas por dia. No restante do país, o máximo é de 12 horas com energia. Hoje o desemprego atinge mais de 40% de toda a população economicamente ativa do Iraque.
Por fim, o neoliberalismo. Os Estados Unidos importaram à nação esse modelo, que carregam pela força das armas, cuja função é proteger os interesses das suas empresas. Algumas grandes corporações obtiveram contratos especiais para a reconstrução do país, amealhando bilhões de dólares decorrentes de investimentos diretos do Tesouro americano e da venda de petróleo, agora confiscado pelos Estados Unidos. Entre elas, a Halliburton, ligada ao vice-presidente Dick Cheney. Praticamente todos os serviços básicos da população, como saúde, educação e transportes, foram privatizados, entregues às empresas da iniciativa privada, em sua maioria, estadunidenses. Mais de 40% de toda a água do país hoje não é potável, aumentando em muito os casos de tifo e malária. Especialmente quanto ao câncer, este aumentou em mais de 1.200%, em função de uso de balas com urânio empobrecido. A freqüência escolar caiu 65%.
Também nesse interregno, surgiram fotos comprometedores contra os Estados Unidos. A partir de 29 de abril de 2004, o mundo ficou chocado com os maus tratos, com a brutalidade e com as torturas a que os iraquianos eram submetidos pelos soldados estadunidenses na prisão de Abu Ghraib. Nunca se violou tanto em tão pouco espaço de tempo os direitos humanos em toda a história do Iraque. Isso mesmo comparando-se aos 24 anos de Saddam.
Em janeiro de 2005, montou-se uma grande farsa. Para dizer ao mundo que os estadunidenses levaram ao Iraque a tal da democracia ocidental, as primeiras eleições constituintes foram realizadas, nas quais xiitas saíram vitoriosos. Aliaram-se com os curdos e constituíram um governo provisório. Fizeram uma constituição ao seu bel prazer, ignorando a resistência que não aceita essa farsa de eleições, com o país ocupado militarmente. Esse arremedo de constituição acabou sendo referendado pelo povo. Este ano, os iraquianos foram novamente chamados às urnas, para mais uma farsa. Elegeu-se o congresso regular com mandato de quatro anos. Novamente, xiitas venceram, mas sem maioria. Nem sequer os curdos estavam aceitando que esses formassem o governo com os principais cargos. No entanto, após pressões americanas, um “novo” governo pode ser instalado, com um primeiro-ministro xiita tomando posse (Nuri Al Maliki). Um governo tão fantoche dos Estados Unidos que não tem sequer capacidade de pedir um prazo para que se diga quando pretendem deixar o país. O próprio George Bush já advertiu: esse assunto (da desocupação) deverá ser tratado apenas e tão-somente pelo seu sucessor (em 2008).
Por fim, vale destacar a prisão do presidente Saddam Hussein, em dezembro de 2003. Dessa época em diante, montou-se outra farsa, que seria a do seu “julgamento”. Todas as convenções internacionais de Genebra proíbem taxativamente que nações ocupantes montem tribunais para julgar quem quer que seja. O próprio ex-presidente denuncia seguidamente essa farsa, defendido que vem sendo por um comitê internacional de advogados compostos, entre tantos outros, pelo ex-procurador geral da República dos Estados Unidos no governo Lindon Johnson, Dr. Ramsey Clark (criador da ONG chamada International Action Center, cujo endereço é http://www.iacenter.org/). Pelo menos três de seus advogados foram assassinados, o último deles com claras marcas de que foi morto por forças leais às tropas estadunidenses de ocupação e da polícia iraquiana. Saddam realizou uma greve de fome para protestar contra o cerceamento de sua defesa. O processo e a farsa seguem e o objetivo claro é condená-lo e, conforme for, enforcá-lo.
A estratégia americana
O contexto da ocupação do Iraque decorre dos episódios de 2001, com a explosão das torres gêmeas, considerada o primeiro ataque contra os Estados Unidos a partir de seu próprio território, desde 1815. Bush decidiu invadir o Afeganistão, mas o objetivo principal era, desde essa época, derrubar Saddam, mesmo que comprovadamente este nunca tenha apoiado as ações do grupo Al Qaeda e sempre ter defendido um estado laico e desvinculado da religião (nos moldes do próprio programa do Partido Baath, que governa a Síria). Mas Bush não ouviu sequer seus assessores mais próximos, que, posteriormente, demitiram-se do governo (vários escreveram livros de críticas à ocupação e às ligações da família Bush com os sauditas e a própria família de Bin Laden).
Eleito pela primeira vez em 2001, o presidente dos Estados Unidos estava então com a sua mais baixa popularidade até os ataques às torres gêmeas. Depois disso, chegou a 70% de aprovação, com seu discurso guerreiro e bélico. Começou a implantar a doutrina do unilateralismo, emanada de seus assessores de extrema direita, fundamentalistas cristãos, vinculados a um centro de estudos chamado de Novo Século Americano (The New American Century). Esse grupo edita várias revistas conservadoras. Na mídia americana são chamados de neocons.
O processo em curso é praticamente um genocídio, pois tenta-se exterminar os iraquianos, tal qual Israel vem tentando fazer com os palestinos que vivem sob ocupação militar. Declaração recente do major Ralph Peters é clara nesse sentido: “Para alcançar esse objetivo – a ocupação –, estamos dispostos a matar um número razoável de pessoas.” O que seria “razoável” para os estadunidenses? Em 1996, sob o governo “democrata” de Bill Clinton – depois de o bloqueio econômico no Iraque ter vitimado mais de 500 mil crianças –, quando perguntaram a sua secretária de Estado, Madeleine Albright, se tinha valido a pena a guerra de 1991 e esse embargo, ela respondeu: “Essa é uma pergunta difícil. Mas, sim, achamos que valeu a pena”.
Entre as tropas estadunidenses é comum ouvir a frase “queremos um Iraque sem iraquianos”. Ou seja, um país que forneça única e exclusivamente o tão necessário petróleo para abastecer as necessidades energéticas dos EUA. Em paralelo, nota-se nas ruas do Iraque sentimento exatamente oposto. O que é compreensível, na medida em que a ação do ocupante vem se caracterizando por brutalidades, massacres, destruição de casas e mortes de civis inocentes, incluindo centenas de crianças.
A jornalista argentina Karen Marón, ao entrevistar Rush Limbaugh, conselheiro de George Bush, relata que esse declarou, sem papas na língua: “É possível que tenhamos que usar outras armas, além das convencionais, contra essas pessoas – terroristas. É como se você quisesse se livrar de suas baratas com inseticida.” Um absurdo a comparação de seres humanos com baratas. Tal qual fizeram os generais estadunidenses nos séculos XVIII e XIX, quando praticamente exterminaram os índios locais que, para eles, não eram seres humanos. Essa é a visão que os EUA têm dos árabes, de superioridade.
A discussão hoje é quando e em que condições deixarão o país.
Paralelo a esse debate, outro tema vem à tona: teria valido a pena a ocupação do Iraque? Sobre ambas questões, há divisões entre os analistas internacionais. Acerca do primeiro aspecto, há os que dizem que não há mais clima algum para a permanência das tropas de ocupação. Outros entendem que, como o próprio Bush sinaliza, os estadunidenses não sairão antes do término de seu mandato, em janeiro de 2009. O próprio presidente fala em “combates duros”, ou seja, ele prevê ampliar os ataques contra iraquianos, bem como prevê que será combatido pela resistência árabe. Analistas de viés mais conservador apostam que a ocupação valeu a pena e que os ganhos foram muito maiores que as perdas, e os danos causados, mesmo as vidas de soldados estadunidenses compensam (para esses, as vidas de iraquianos não têm importância alguma).
Minha opinião é que o desgaste aumenta a cada dia e a popularidade do presidente esta baixíssima. Poderá ter que sair derrotado do Iraque, como já ocorreu em 1975 no Vietnã. Ainda que existam elementos que possam caracterizar a eclosão de uma guerra civil, é preciso que as forças progressistas e mais avançadas compreendam que o inimigo comum e maior de todos eles são o exército estadunidense e contra esse devem se voltar todas as armas – e as batalhas devem ser travadas para a sua expulsão de solo árabe. A unidade política deve ser construída entre todas as correntes de opinião, patrióticas e nacionalistas, entre as correntes religiosas sunitas e xiitas, bem como com os cristãos. Continuo achando que até o início de 2007, grandes mudanças serão percebidas nos rumos do Iraque e de seu governo. De longe desse país, nós nos empenhamos para emprestar nossa voz e nossa pouca energia para apoiar a causa da resistência árabe no rumo da vitória.
* Lejeune Mirhan é sociólogo, escritor e professor de Sociologia e Ciência Política, especialista em Oriente Médio e arabista.