O Egito é o maior país árabe – arabizado na verdade – de todo o Oriente Médio. Jogou grande papel nas décadas de 1950 e 1960, quando sob o comando do lendário Gamal Abdel Nasser, considerado o maior líder dos povos árabes. Foi do Egito a única – e breve – experiência de unificação de países árabes, quando da existência da República Árabe Unida. Pretende-se com este artigo abordar a história recente desse grande país, de seu canal estratégico do Suez. O artigo abordará uma das mais importantes guerras movidas por Israel contra um país árabe, que foi a Guerra dos Seis Dias de 1967. Por fim, serão tratados temas da política do Egito pós-2011, quando a ditadura Mubarak foi posta abaixo. Para onde vai o Egito na atualidade? É o que se pretende tratar na sua conclusão.
O Egito árabe
Há duas histórias do Egito. Uma, da mais antiguidade remota, quando da época dos faraós, das suas pirâmides, de seu politeísmo, da escravidão que ocorreu na sua forma econômica e de tantos outros fatores. Não é disso que pretendemos tratar aqui. Vamos abordar a história recente do Egito desde quando da conquista pelos árabes e muçulmanos, ou seja, do processo de sua arabização, da sua assimilação da língua e da cultura dos árabes, sem que seu povo com isso tenha abandonado seus costumes e mesmo sua religião anterior, que era a cristã do rito chamado coopta.
No ano de 639, já com sete anos da morte de Mohhamad – Maomé para os ocidentais – já era grande a expansão do Império, que levava o nome de Fatimida, cuja sede havia sido instalada exatamente no Cairo, a capital milenar do Egito. Esse é o momento do início de sua história árabe.
Sabemos que a cidade de Constantinopla – antiga Bizâncio, do Império Romano do Oriente – havia sido tomada pelo Império Otomano, comandado pela etnia dos turcos. Como sempre temos dito, esse povo já havia se convertido à religião islâmica, de forma que seu império passaria a ser também muçulmano. Os otomanos expandem o seu domínio para quase todo o Oriente Médio e conquistam o Norte da África, quando aportam por lá em 1517.
O Egito vai viver um breve interregno no seu processo de islamização e afasta-se do Império Otomano apenas quando as tropas napoleônicas chegam ao país em 1798. Foi nesse momento que os egípcios travam contato com os ideais e as propostas da Revolução Francesa de 1789. Os otomanos – como foi assim com todos os impérios – tinham que nomear governadores para administrar as províncias conquistadas. Neste caso do Egito, convém destacar a figura de Mehmet Ali, nomeado governador geral em 1805, que toma importantes medidas para a modernização do país.
Mas, a modernização mais importante do país dar-se-á pelas mãos do neto de Mehmet Ali, que foi Ismail Paxá, que levava o título de sultão. Foi sob seu governo em 1866, que se instala o Parlamento egípcio, chamado de Assembleia de Delegados. Também foi sob seu governo, que o famoso Canal de Suez foi construído em 1869, tendo como engenheiro responsável o francês Ferdinand Lesseps. Essa construção – que duraria dez anos e mataría mais de cem mil trabalhadores – acabou fazendo com que o país se endividasse. Com isso, passa a ocorrer uma completa subordinação política ao Reino Unido (Inglaterra), credor das suas dívidas.
A dominação britânica do Egito acabou durando 72 anos, pois vigorou desde 1850 e vai até 1922, quando ocorre uma independência ainda formal do país. Mesmo o país estando sob o domínio do Império Otomano, quem mandava mesmo, dava as cartas no país era o Alto Comissariado Geral Britânico. O ápice, por assim dizer, do domínio britânico ocorreu durante a I Guerra Mundial, quando o país foi declarado um protetorado militar britânico. Tudo isso em função do gerenciamento do seu estratégico canal de Suez.
A independência formal de 1922 não livraria o país da imensa influência britânica nos destinos do Egito. Até o seu sistema parlamentar foi completamente copiado da Inglaterra. Criou-se uma monarquia parlamentarista, instalando-se tanto um rei fantoche, quanto um parlamento subserviente aos ingleses. Tal qual a Inglaterra, onde se dizia “o rei reina, mas não governa”. No caso egípcio nem o rei nem o parlamento governavam de fato o país. O rei fantoche nomeado era o rei Fuad.
O canal de Suez
A construção de um canal ligando o Mar Vermelho ao Mar Mediterrâneo era sonho antigo do povo egípcio. Os cálculos que se faziam era que isso encurtaria as viagens mercantis que vinham da Índia e da China por mar em mais de sete mil quilômetros. O canal – uma das maiores obras de engenharia da humanidade – tem hoje 194 Km e sua travessia dura de 11 a 16 horas. Calcula-se que diariamente atravessam o canal em torno de 50 navios ou 18 mil ao ano. É a maior fonte de renda para o Egito desde àquela época, cuja arrecadação era toda apropriada pelos ingleses. Estima-se em mais de seis bilhões de dólares a receita anual do canal. A Organização Mundial do Comércio estima que 14% de todas as mercadorias do mundo passam por aquele canal.
Na chamada Guerra do Yom Kippur ocorrida em outubro de 1973, em uma iniciativa do Egito de Anuar El Sadat apoiado pela Síria de Hafez El Assad, contra Israel, o Egito acabará perdendo a soberania sobre o canal, que só lhes sería devolvida em 1974.
A República e a era Nasser
A monarquia de fachada do Egito chegará ao fim em 18 de junho de 1953, quando o general Mohammad Nagib assume a presidência da República do país. Chegava ao fim 31 anos de reinados corruptos e subservientes ao imperialismo inglês. Essa mudança só foi possível a partir de um movimento dos jovens oficiais revolucionários do exército egípcio, onde se destacava Gamal Abdel Nasser (alguns pronunciam Jamal; Addel é hoje um dos nomes mais populares no mundo árabe).
A partir de novembro de 1954, quem passa a governar de fato e de direito o Egito passa a ser o Conselho do Comando da revolução. Será somente em 23 de junho de 1956, que vai assumir a presidência – então com apenas 38 anos – o jovem oficial Nasser (1918-1970), apoiados pela oficialidade patriótica árabe, já defensores do que posteriormente viria a ser considerado de pan-arabismo, ou seja, uma unidade do povo e das nações árabes em uma só nação.
Nasser toma várias atitudes, todas importantes para a Nação egípcia. A primeira delas e talvez a mais relevante, foi a nacionalização do grande Canal de Suez, que passa ao total controle do Egito. Nasser outorga uma nova e republicana constituição, laica, ainda que o Islã seja preservado e respeitado. Nasser vai fazer várias reformas de base, que fazem aumentar a sua popularidade.
Nasser teve uma gestão polêmica no que diz respeito á democracia interna. Caudilho como o nosso Getúlio Vargas e Juan Domingo Perón, nosso vizinho argentino, Nasser teve momentos em que flertou com o totalitarismo, tendo fechado todos os partidos políticos, em especial o Partido Comunista Egípcio, dos mais antigos do mundo árabe, fundado em 1921 (no Brasil o PCB atual PCdoB foi fundado em 1922). Nasser combateu com força – como veremos – a Irmandade Muçulmana, que em certos períodos de seus 14 anos de governo chegou a praticar a luta armada para derrubá-lo. Nasser vai aprofundar a industrialização do país. É do seu período na presidência a construção da então maior hidroelétrica do mundo, a represa de Assuã, nas águas do rio Nilo.
Nasser se aproximou da União Soviética, afastando-se da órbita dos Estados Unidos. É fundador do Movimento dos Países Não Alinhados[1]. A marca de sua gestão foi a da luta pela soberania e independência nacional do Egito, garantindo como nação soberana e pela não-ingerência em sua política interna. De certa forma, pode-se dizer que ele se aproxima também da corrente mais à esquerda chamada “terceira mundista”, que teve no economista comunista egípcio Samir Amin – falecido em agosto de 2018 – e no argelino Ahmed Ben Bella, suas maiores expressões.
Entre os anos de 1958 e 1961, Nasser idealizou e implantou, a República Árabe Unida – RAU, em aliança com a Síria e foi seu presidente nesses três anos. Ele aboliu a nacionalidade “egípcia’ e “síria”, criando apenas a nacionalidade ‘árabe”, como deveria ser o correto, pois é um mesmo povo, com a mesma ancestralidade e história, ainda que separado por várias nações, na maioria delas com fronteiras estabelecidos pelos vitoriosos da I Guerra Mundial (acordos Sykes-Picot).
Sua morte em 1970 chocou o mundo árabe pelo papel que ele jogava. Os que acompanharam o seu funeral no Cairo relatam como sendo a maior presença popular e de massas na história do país. Não deixou sucessores à altura e não houve na história árabe moderna algum líder que chegasse ao seu patamar de importância.
A Irmandade Muçulmana
A organização que vamos falar agora não é só a mais antiga organização política e religiosa do Egito de vida continuada. Trata-se de uma organização que chegou a ter meio milhão de membros na década de 1940 e tem forte influência não só no Egito, mas em todo o mundo árabe e muçulmano. Tem ramificações por mais de 70 países (os países islâmicos são 47, ou seja, sua presença extrapola e muito, esses países).
Fundada em 1928 – em 2018 completou 90 anos – por dois intelectuais egípcios. Eles eram Hassan El-Banna (1906-9149)[2] e o escritor Sayed Qutb (1906-1966), ela tem o seguinte lema: “Alá é o nosso objetivo; Mohhamad é o nosso mensageiro e nosso exemplo; o Alcorão é a nossa Constituição; a Jihad é o nosso método e o martírio é o nosso desejo”[3]. A irmandade defende que a Sharia seja a lei que deva ser aplicada a todas as pessoas de um país, ou seja, sería como se não houvesse justiça comum, civil como nós chamamos no Brasil. No Egito isso nunca vigorou.
Os membros da Irmandade defendem que seja construído um estado teocrático. Mais ou menos como nos moldes da Arábia Saudita (mas completamente diferente do que vigora no Irã). Todos os membros da Irmandade – sem exceção – são sunitas e salafistas, que é uma corrente do Islã sunita considerada purista, fundamentalista e apegada aos princípios do Islã. Seu maior expoente, talvez o mais famoso dos membros da Irmandade seja o presidente da Turquia, Tayyp Recep Erdogan. Seus braços internacionais mais famosos são os grupos Hamas da palestina e a Al Qaeda no Afeganistão (de Bin Laden). O grupo terrorista que se apresenta como “Estado Islâmico’ (não é nem estado e nem islâmico) tem na Irmandade o seu modelo de prática religiosa.
Na década de 1940 criou um braço armado, denominado Jihad, que praticava ações terroristas, atentados contra alvos civis, tendo combatido desde a monarquia pró-Inglaterra, como os governos republicanos. Abdicou das armas apenas em 1973, quando fez acordo político com o governo do presidente Anuar El Sadat. Na sua trajetória histórica fez as alianças as mais heterodoxas, desde o Partido Nazista de Hitler, passando pela CIA. A Irmandade chegará ao poder pelo voto no governo de Mohhamad Morsi, como veremos mais adiante.
A Guerra dos Seis Dias
Esta foi a segunda guerra de agressão de Israel contra os países árabes (infelizmente, os livros de histórias sempre falam em “guerras dos árabes contra Israel”, como se esse país fosse um inocente que só é agredido e que eles só se defendem). Ela ocorreu entre os dias 5 e 10 de junho de 1967, quando ainda era presidido por Egito Gamal Abdel Nasser.
A história registra que às 7h45 do dia 5 de junho de 1967, os aviões da Força Aérea Israelense (fornecidos pelos EUA, claro) alçam voo e atacam todas as nove bases aéreas militares egípcias. Nenhum dos aviões da Força Aerea Egípcia conseguiu sequer alçar voo para entrar em combate. Toda a aviação egípcia foi destroçada em solo. Nasser chegou a renunciar em função dessa imensa derrota para os árabes, mas o povo impede que isso ocorra.
Aqui é preciso registrar que essa foi a maior expansão territorial israelense desde a proclamação de seu Estado em 15 de maio de 1948. Como sabemos, Israel é o único país criado artificialmente por imigrantes que se dirigiram para a Palestina com a finalidade explícita de proceder uma neocolonização e defender interesses do imperialismo inglês e estadunidense do início do século XX. Mas, mais do que isso. É artificial pelo fato que foi reconhecido pela ONU e em seguida admitido como seu membro. Não por acaso a sua bandeira tem duas listras em azul simbolizando dois rios, como que expressando o desejo dos sionistas de que as fronteiras desse Estado fosse desde o Nilo no Egito até o Eufrates no Iraque.
A conquista territorial israelense deu-se nas seguintes regiões: a) toda a península do Sinai foi tomada; b) a Palestina – que a ONU já dera para os judeus sionistas 54% e na primeira guerra contra os árabes esse percentual chegou a 73% – foi ocupada integralmente (100%, envolvendo toda a Cisjordânia e a Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental); c) as famosas Colinas de Golan na Síria (estratégicas); d) parte do Sul do Líbano.
A Era de Anuar El Sadat
Sadat foi amigo e companheiro de Nasser em boa parte de sua vida. Fizeram academia militar juntos, tendo nascido no mesmo ano de 1918. Era seu conselheiro militar e foi seu vice-presidente. Assumiu a presidência quando da morte de Nasser em 28 de setembro de 1970, quando tinha então apenas 52 anos. Vai governar o país até 6 de outubro de 1981, quando foi assassinado por um comando terrorista jihadista.
Sadat é praticamente o oposto de Nasser. Levou o Egito, no auge da guerra fria, a se afastar da União Soviética e se aproximar da órbita dos Estados Unidos. Não por acaso o tesouro estadunidense, com apoio do Congresso, concede uma ajuda militar ao Egito, paga diretamente aos cofres do exército egípcio de mais ou menos dois bilhões de dólares ao ano, o mesmo que Israel recebe. Esse é um dos fatores que faz com que sempre seja mais difícil um rompimento com os Estados Unidos.
Em 19 de novembro de 1977 Anuar Sadat torna-se o primeiro – e praticamente o único de relevância – a visitar oficialmente Israel. Isso chocou os governos e o povo árabe em geral e mesmo lutadores no mundo inteiro que sempre apoiaram a causa palestina. Ele é considerado traidor dos árabes. Ele foi recebido com aplausos e em pé pelos parlamentares do Knesset (parlamento) israelense.
Após muitas reuniões e conversas, Sadat assina em 1978 os acordos chamados de Camp David (residência de verão dos presidentes dos EUA), que – em tese – trariam a paz e Israel tería que devolver ao Egito todos os territórios ocupados na península do Sinai tomadas com a Guerra dos Seis Dias em junho de 1967. Na prática, isso só ocorreu mesmo quatro anos depois, em 1982, ano que Israel acabou invadindo o Líbano em mais uma das suas múltiplas agressões aos países árabes. Tais acordos de paz rendem a Sadat e ao primeiro ministro de Israel, Menachem Beguin[4], o prêmio Nobel da Paz em 1979.
A Era Hosni Mubarak
Mubarak é dez anos mais novo que Nasser e Sadat. Nascido em 1928 (em 2018 ele completou 90 anos) havia sido nomeado vice-presidente do governo de Sadat, de quem foi chefe da Força Aérea (ele é brigadeiro). Governou o Egito com mãos de ferro. Manteve uma democracia de fachada. O Egito seguiu sempre amigo de Israel e dos Estados Unidos, cujas ordens jamais deixou de cumprir.
Foi “reeleito” quatro vezes. Na verdade o que ocorria era o chamado referendo, pois apenas o nome dele (e de seu antecessor) eram apresentados aos eleitores que só poderiam dizer sim ou não. Os índices de apoio – fraudados, é claro – sempre ultrapassaram a 90%. Apenas na sua última “eleição” em 2006 houve mais candidatos. O grupo político Irmandade Muçulmana jamais foi legalizada em seu governo. Mubarak, como veremos a seguir, acabou por renunciar em 11 de fevereiro de 2011, pressionado pelo povo nas ruas, após quase 30 anos de governos impopulares e serviçais ao imperialismo estadunidense e à Israel.
A chamada “Primavera Árabe” e os governos de Morsi e Sissi
O que a mídia batizou de “primavera árabe” é, para o povo árabe, um verdadeiro inverso (ouvi isso de vários árabes quando das minhas visitas ao Oriente Médio). A aventada democracia nos países e repúblicas árabes – nunca chegou de verdade e nas monarquias fascistas jamais passou sequer perto. Começam a aparecer estudos que mostram um mesmo padrão de ativismo, orientado por uma cartilha produzida pela CIA tempos atrás, que funcionou nas chamadas “revoluções coloridas” no leste europeu e que, ao que tudo indica, deve ter sido inaugurada na derrubada do primeiro Ministro do Irã em 1953, com Mohammad Mossadeh.
As primeiras manifestações populares contra governos ditatoriais e autoritários árabes tiveram início em dezembro de 2010, na cidade de Túnis, na Tunísia. No dia 18 desse mês, o engenheiro desempregado Mohammad Bouazizi, que vendia frutas em um carrinho de mão no centro da capital tunisiana, cuja polícia havia lhe tomada o seu instrumento de vendas, decidiu imolar-se, ateando fogo ao seu corpo, vindo a falecer. Isso incendiou – literalmente – o país e alguns dias depois o ditador presidente Zine El Abidine Ben Ali renunciaria 10 dias depois, indo exilar-se na Arábia Saudita, paraíso para ditadores e fascistas pró-EUA. Ele estava no poder desde 1987.
Alguns analistas chegaram, à época, de chamar aquele levante popular – eu preferi usar esse termo na maioria dos artigos que escrevi à época, ainda que tenha usada algumas vezes o termo “revolução” também – do povo árabe de “Revolução Facebook”. Isso porque essa rede social tem um dispositivo chamado de “Evento”, onde as pessoas criam atividades e convidam seus amig@s a comparecerem. Alguns desses eventos convocados para a Praça Tahir – a maior e mais central do Cairo, que ficou sendo uma espécie de centro de comando do levante popular – chegou a ter quase dois milhões de confirmações. E o sucesso de público era garantido.
A chamada Primavera Árabe não teve propriamente um comando centralizado. Não havia um líder específico. As coisas eram decididas e encaminhadas coletivas. Não havia um rosto conhecido. A juventude – estudantil e trabalhadora – teve papel de destaque. Os partidos de esquerda, em especial o Comunista Egípcio, procurou participar ativamente dos movimentos, mas jamais conseguiram ter a sua direção.
Aqui um registro. Na visão leninista de “revolução” guarda uma relação direta em um momento em que o povo de um país já não aceita mais ser governado como antes pelas elites dominantes e essas mesmas elites já não conseguem mais administrar o país. No entanto, o sucesso está diretamente ligado tanto à organização – aqui a necessidade de uma partido dirigente – e o grau de consciência política das massas. No caso em tela, nenhum desses dois componentes estava presente e por isso, a meu ver, o fracasso do movimento, ainda que vários governos reacionários tenham vindo abaixo. Com a renúncia do ditador Mubarak, o exército assume o comando do país, mais uma vez.
A onda de democracia – ainda que relativa e limitada – bateu forte no Egito. A Irmandade Muçulmana, a maior força política do país, até então na ilegalidade, com vários de seus líderes presos, foi legalizada e fundaram pela primeira vez em pouco mais de 80 anos um partido político, a quem deram o nome de Partido da Liberdade e da Justiça – PLJ e escolheram para presidí-lo um desconhecido engenheiro chamado Mohammad Morsi.
Em 23 de junho de 2012, finalmente, ocorreram eleições relativamente livres no país com vários candidatos. Também aqui – como em muitos momentos da história mundial – a esquerda e a centro esquerda saíram divididas. E, para piorar as coisas, no segundo turno, quando poderiam ter apoiado unificadamente uma candidatura mais progressista e popular, alguns pregaram nulos e branco ou abstenção. Venceu o desconhecido candidato da Irmandade, Mohammad Morsi.
A orientação política e religiosa de Morsi é fundamentalista e conservadora, de direita na verdade. Seu grande desejo e sonho – como em geral de todos os membros dessa fraternidade – é o de ver o Egito transformar-se em Estado Teocrático onde o Corão seja a constituição e a Sharia seja a lei por onde as pessoas possam recorrer para resolver suas pendências judiciais.
Morsi, na verdade, tentou, em sua curta permanência no poder, fazer isso. Impôs, ainda que referendada por maioria da população, uma nova constituição, com uma presença forte da religião islâmica. Foi, como Erdogan – que é da Irmandade – da Turquia vem fazendo, uma islamização paulatina e moderada do país. Isso irritou parte expressiva da população e aos militares.
Morsi acaba por se indispor com os cooptas cristãos que são fortes no Egito. Governou pouco mais de um ano. Em 3 de julho de 2013, após um ultimato do chefe das forças armadas do Egito de 48 horas para que renunciasse, ele foi deposto por um golpe de estado militar, mas com apoio da esmagadora maioria da população, dos muçulmanos, dos partidos, da justiça e dos cristãos cooptas. A Irmandade volta para a clandestinidade, seu partido é fechado e Morsi é preso, e está nessa condição até os dias atuais como também o ex-presidente Mubarak, aguardando julgamentos finais.
A partir daí, assume o comando do país o presidente da Suprema Corte do Egito, o cristão coopta Adly Mansour. Uma nova constituição é aprovada e a consulta popular sobre a sua aprovação obtém 98% de apoio do povo. O Egito ampliaria um pouco mais a sua democracia e convocaria novas eleições gerais, que iriam ocorrer em maio de 2014.
Nesse pleito de 2014, apenas dois candidatos concorreram às eleições. O vitorioso – com absurdos 96% dos votos equivalente a 23 milhões de votos – foi o chefe do exército, o general Abdel Fatah El Sissi (registre-se aqui que ele teve dez milhões de votos a mais que Morsi dois anos antes) e governa até hoje. Infelizmente, a maior de todas as reivindicações do povo egípcio e dos povos de todos os países árabes, sería um apoio maior á causa palestina, em especial a abertura da fronteira egípcia com a Faixa de Gaza, na cidade de Rafah. Isso jamais ocorreu, beneficiando o sionismo israelense e obrigando os palestinos a abrirem dezenas de túneis para poderem receber alimentos, medicamentos e materiais de construção entre outras mercadorias de seu consumo.
Talvez por ordem dos EUA ou ainda por medo de perder a polpuda ajuda militar de dois bilhões de dólares anuais que o tesouro estadunidense envia aos militares egípcios, o governo Sissi vem mantendo, regra geral, o mesmo estilo e as mesmas orientações em política externa que vinha sendo implantadas no país desde a morte de Nasser 48 anos atrás.
O futuro do Egito
Como sempre dissemos, não fazemos previsões. Pretendo concluir este texto com algumas opiniões e abordar tendências e linhas gerais de para onde poderá caminhar o Egito neste atual cenário não só do mundo árabe, mas também Oriente Médio expandido (com Irã e Turquia) e no mundo em geral.
Tenho pautado minha análises internacionais sempre levando em conta as três palavras mágicas: “correlação de forças”. Vivemos em um mundo hoje – na verdade desde 1991 – onde a antiga bipolaridade da Guerra Fria pós-1945 foi substituída pela unipolaridade. É claro – e temos muitos sinais disso – já podemos presenciar hoje uma transição para um mundo – almejado por muitos – multipolar, ou seja, onde tenhamos muitos países que sejam polos em suas regiões geográficas, mas que tenhamos, acima de tudo, muita cooperação entre povos e países, nações, regiões da terra. No entanto, a correlação de forças ainda é adversa aos que pretendem um mundo multipolar.
Essa transição para a multipolaridade pode ser demorada. Não temos como prever. Mas pode ser breve, em função do declínio acelerado que vem tendo o império estadunidense, envolvo em sua crise profunda, que é do capitalismo em geral, mas envolto em um déficit que ultrapassa do seu PIB, ainda que ele seja o emissor da moeda de troca e de entesouramento existente que é o dólar.
De meu ponto de vista, o afastamento do Egito da órbita estadunidense – como também a reposição aos palestinos de suas terras e de seus direitos usurpados – estão diretamente relacionados com a alteração dessa correlação de forças desigual. Há uma relação também direta entre elevação das consciências políticas das massas e da sua própria organização, para que as coisas possam mudar de rumo, no Egito, no Oriente Médio e no mundo em geral. Ou seja, quanto maior for a organização popular e a consciência dos povos, tanto maiores serão as chances de vermos a mudança de rumos na geopolítica mundial.
O Egito vive, de fato, uma dualidade. Seu presidente, o general Sissi, pouco antes de sua posse e depois, visitou Moscou, sob o comando de Putin, pelo menos três vezes. Isso não significa que voltará a ter relações preferenciais com a Rússia, como na época de Nasser. Mas, pode acontecer.
Introduzo um elemento para reflexão. Há um claro fortalecimento do eixo chamado “Arco da Resistência”, formado pela Síria, Iraque, Irã e Líbano e mais o Hezbollah, que conta com o apoio dos comunistas, socialistas, patriotas, pan-arabistas de todo mundo árabe. Se esse eixo seguir sendo cada dias mais forte, atrairá outros países e o Egito não poderá ficar isolado nesse movimento. Terá que prestar mais atenção a isso. Da mesma forma que se a Rússia se fortalece, sua presença no mundo árabe tende a crescer, de forma que pode facilitar as mudanças de ares e de rumo no Egito.
Por fim, por ora a Irmandade seguirá clandestina, mas ainda muito forte no seu país. E sigo achando que a dinheirama que os Estados Unidos enviam para manter o Egito na sua órbita continuará jorrando nos cofres dos militares desse milenar país. Vamos conferir.
* Sociólogo, escritor, pesquisador, professor e analista internacional. É colaborador da revista Sociologia da Editora Escala, e dos sites Duplo Expresso, Vermelho, Resistência e Fundação Grabois. Foi professor da UNIMEP por 20 anos. Presidiu o Sindicato dos Sociólogos do Estado de SP e a Federação Nacional dos Sociólogos. Tem nove livros editados, dos quais cinco sobre o Mundo Árabe.
[1] Pode-se dizer que esse movimento surge na Conferência de Ásia-África na cidade de Bandung, Indonésia. Ele chegou a reunir na década de 2000, mais de 110 países. Tem por objetivo articular relações internacionais independente dos blocos da época liderados pelos EUA e pela URSS, ainda que esta tenha dado apoio à essa articulação. Cumpriram papel importante na geopolítica mundial.
[2] Ele é avô do intelectual Inglês, Tarik Ramadã, da Universidade de Oxford, de orientação religiosa sunita e salafista.
[3] No Ocidente, apoiado pela mídia anti-árabe, o conceito de “Jihad” ficou distorcido como se fosse uma “guerra santa”. Na verdade é um conceito religioso de “superação” e envolve todo o sacrifício que se possa fazer para que o objetivo da purificação e proximidade com deus sejam alcançados. Tem mais a ver com “esforço” e menos ainda com o conceito de “guerra”.
[4] Essa é a figura mais polêmicas de Israel. Aderiu ao grupo terrorista Irgun em 1942 que, ao lado de outros agrupamentos paramilitares como a Stern e o Haganah, agrediam aldeias palestinas. Participou em 1947 do tristemente famoso massacre na aldeia de Deir Yasin, matando mais de 120 pessoas e em 1948 explodiu o Hotel King David em Jerusalém, onde ficava o QG do Mandato Britânico na Palestina. Em 1981, já como primeiro Ministro, autorizou a destruição da usina nuclear de Osiraq, no Iraque e no ano seguinte, determinou a invasão do Líbano.