Em termos de história, na maior parte do tempo, sejam em atitudes pessoais, atos coletivos e mesmo descobertas e invenções, nem sempre aquilatamos as dimensões que essas atitudes e descobertas podem ter na história da humanidade e no futuro imediato ou de médio e longo prazo.
Pois arrisco um palpite que o caso do jovem de 26 anos Mohammed Boazizi, vendedor de frutas ambulante, mas com formação universitária, é um desses casos. Inconformado com o fato da polícia ter tomado seu carrinho, seu ganha pão, decidiu imolar-se em frente ao palácio presidencial onde governava desde 1988, por longos 23 anos Zine Abdine Ben Ali. A partir desse momento, até a queda do ditador em 16 de janeiro, transcorreram 27 dias de grandes manifestações. A polícia atacou com fúria a multidão diariamente, que, de peito aberto, a enfrentou. O ditador – chamado durante todos esses anos de “presidente” por ser amigo de Washington – fugiu em debelada com sua família e, dizem, com mais de cem malas carregadas de ouro e dólares.
Em vários outros países ocorreram imolações nas capitais árabes. Essa forma de manifestação não é novidade no movimento popular. Foi muito usada pelos monges budistas na década de 1960, contra os EUA na Guerra do Vietnã. Na Guerra dos Bálcãs na década de 1990, em especial na Albânia esses episódios também ocorreram.
Toda a região do Oriente Médio, nos 22 países árabes (incluindo a palestina que ainda não tem seu Estado nacional), possui governos longevos. Ou são monarquias absolutistas ou são ditaduras disfarçadas de democracias, onde a cada cinco ou seis anos, fazem-se “eleições” farsescas, fraudulentas para tentar legitimar ditadores amigos dos Estados Unidos, para garantir ao império norte-americano a defesa de seus interesses nessa estratégica região, em especial a garantia do fluxo de petróleo para a América, a passagem dos seus navios petroleiros e cargueiros pelo Canal de Suez, garantir, fundamentalmente, a existência do estado racista e sionista judaico de Israel, algoz do povo palestino.
No entanto, há uma diferença imensa de alguns protestos e mesmo a derrubada de um ditador na Tunísia, protestos na Jordânia contra o Rei Abdulláh 2º, no Iêmen do ditador Ali Abdulláh Saleh no poder há 32 anos ou até contra o rei Abdulláh Bin Abdel Aziz, da família saudita que governa a Arábia Saudita há séculos (até o nome do país vem do ancestral Ibn Saud) e o que esta agora acontecendo no Egito.
O Egito, cujos protestos iniciaram-se desde a queda do ditador tunisiano, as coisas são completamente diferentes. É o maior país árabe, com 80 milhões de habitantes e aliado estratégico tanto dos Estados Unidos como de Israel, pois se coloca como inimigo dos árabes e dos palestinos.
Pretendia dar um panorama geral de todos os outros países árabes neste momento, com suas encruzilhadas históricas, em especial o Líbano, a Palestina e o Iraque. No entanto, ainda que os problemas desses países que mencionei se insiram no contexto geral de que comentarei sobre o Egito em particular, esta análise ficará por demais longa se tratasse de todos. Ficarão para as próximas colaborações que enviarei.
Egito, um país estratégico
O Egito é um dos países árabes mais milenares, ao lado da Síria. É claro que é justo falar de uma época dos faraós e suas dinastias e outra do momento no século VII quando foi ocupada pelos muçulmanos do Império Árabe.
O marco fundamental do Egito ocorre com a revolução de 1952 que derruba o rei Farouk e instaura a República, foi uma iniciativa dos jovens oficiais livres, liderados pelo coronel Gamal Abdel Nasser. Um presidente interino foi colocado no poder, o general Mohammad Naguib, que durou até 1954. Dessa data em Dante, esse país, que diz fazer eleições regulares para presidente, teve apenas e tão somente três presidentes. O primeiro deles, Nasser, o maior e mais querido líder árabe da história, governou de 1954 até 1970 quando morreu. Anuar El Sadat assume e é assassinado em 1981 e de lá para cá, Hosni Mubarak, o ditador de plantão foi “eleito” e reeleito nada menos que seis vezes, muitas vezes com votações que atingiam quase cem por cento.
Sempre foi amigo dos Estados Unidos. Governou com a mão de ferro esses trinta anos e nem sequer teve a pretensão e nem precisou indicar um vice-presidente. Era vice de Sadat desde 1975, como chefe da Força Aérea. Após a assinatura dos acordos de paz com Israel em 1979, sob os auspícios da administração Carter após as conversações de Camp David em 1978, Mubarak vai ganhando destaque até que, com o assassinato de Sadat por extremistas islâmicos que o consideraram traidor, assume definitivamente a presidência.
O Egito sob o seu governo viveu trinta anos de corrupção e repressão do povo, dos sindicatos e dos partidos de esquerda e progressistas. Reprimiu, em nome de uma suposta laicidade, a organização Irmandade (ou Fraternidade, dependendo da tradução) Muçulmana, fundada por Hasan Al Banna, em 1928, sob a inspiração de Sayyid Qutb (falaremos dela posteriormente).
O Egito é o país do OM que mais recebe ajuda direta do tesouro americano, autorizado pelo Congresso dos Estados Unidos. Isso significa em torno de dois bilhões de dólares ao ano nos últimos trinta anos pelo menos. Israel recebe o dobro, ainda que tenha um décimo da população egípcia.
Não é a primeira vez que as massas egípcias vão ás ruas e mesmo com as atuais dimensões (a manifestação do último dia 1º de fevereiro, terça-feira, atingiu dois milhões de pessoas, apesar da imprensa ocidental e brasileira falar em “alguns milhares”...). O povo já havia protestado contra a ocupação turca e depois britânica nos idos dos últimos anos da década de 1910 no século passado.
No entanto, as características atuais são completamente distintas.
O momento delicado que vive o Egito
Quero a seguir, com base na literatura internacional a que tivemos acesso, tecer diversas considerações sobre a realidade desse histórico e estratégico país, sob diversos aspectos, citando, sempre que possível, a fonte.
A parceria estratégica que o Egito mantém com os EUA tem diversos objetivos. O maior deles é o controle do Canal de Suez, por onde passam boa parte dos petroleiros e navios transoceânicos de luxo de todo o mundo. Boa parte da economia mundial depende dessa passagem que liga o Mar Vermelho ao Mediterrâneo. O Canal era explorado pela Inglaterra, mas foi nacionalizado por Nasser em 1956, na mais firme e heroica atitude tomada por um dirigente árabe em toda a história.
Além disso, a mais estratégica passagem entre o Egito e a Faixa de Gaza, a cidade de Rafah, esta sob total controle do governo Mubarak. Para asfixiar Gaza e os palestinos, Mubarak mantém com mão de ferro o total controle dessa fronteira, fazendo o jogo de Israel, que lhe pede repressão maior a cada dia. O exército americano esta inclusive construindo uma muralha de aço para separar a fronteira egípcia e palestina.
Em recente declaração do vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Bidden, este confessou em público o que todos sabem: afirmou com todas as letras que Mubarak não pode ser chamado de ditador. Que seria ele então?
O exemplo tunisiano e algumas imolações ocorridas também no Cairo foi a gota d’água para as manifestações. A imprensa insiste em vincular isso com a questão islâmica, mas isso é um equívoco. O levante é popular e não islâmico. Isso esta claro. São cidadãos egípcios que saem às ruas para pedir um basta à ditadura Mubarak, que até outro dia era chamado de “presidente” por essa mídia internacional e a brasileira, hipócrita como sempre.
O que vimos na imprensa ser chamada de Revolução Egípcia, pode sim ter características de revolução, a depender de quem a dirija e dos rumos que ela possa tomar de ora em diante. Não há como negar que os Estados Unidos lutam com todas as suas forças e armas, para ter o controle de um processo de transição que não faça com que o aliado histórico se afaste de sua órbita de influência (mais abaixo comentarei sobre Israel ainda). O próprio Lênin dava as características de uma situação que pode ser revolucionária, quando ele dizia que “os de cima não mais conseguem governar como antes e os de baixo já não aceitam mais ser governados como antes”. É o caso do Egito.
Ainda assim, a chamada revolução egípcia ainda não da sinais de que tem seu caráter antiamericano, anti-EUA. É sim, de forma clara, uma revolução anti um regime apoiado abertamente pelos Estados Unidos, mas isso é diferente. Sigo de acordo com a opinião da imensa maioria dos analistas internacionais a que pude ler seus despachos, qual seja, de que qualquer regime que suceda Mubarak, é muito pequena a probabilidade de que seja serviçal e dócil com os Estados Unidos. Nesse sentido e por si só, isso já representa uma derrota para o império norte-americano e sinalizam problemas para Obama, mais dos que ele os têm, tanto no front interno e externo. É como se Washington tentasse a todo custo, sequestrar a revolução egípcia, realizando uma transição pacífica e de colaboração que preserve o futuro de Mubarak e seus aliados e os interesses norte-americano e israelenses. E que o modelo neoliberal seja preservado.
Aqui, registro algumas observações:
Formam-se neste momento por todo o país, os chamados comitês populares. O Partido Comunista Egípcio emitiu nota contundente condenando toda a repressão, conclamando o “Fora Mubarak” e a formação de um governo de unidade nacional. O povo nas ruas grita que “exército e povo são aliados”. O slogan que mais se escuta nas manifestações é “não a outro mandato; não á uma república hereditária”, em uma alusão a possibilidade de Mubarak indicar seu filho, Gamal, para assumir o poder em setembro (em árabe La lil-tamdid; La lil-tawrith). Nas paredes pichadas, como que lembrando Maio de 1968, lê-se “Queremos derrubar o sistema”. Cidadãos comuns, unidos, carregam a bandeira egípcia com orgulho. Quiçá isso retorne e desemboque na volta do nacionalismo e o pan-arabismo das décadas de 1950 e 1960 do século passado. Ouve-se ainda “Mubarak, vá-se para sempre! Mubarak, mostre alguma dignidade! (em árabe isso até rima).
Pelo fato da Irmandade ser o agrupamento mais importante na política egípcia, vale a pena saber quais seriam as suas propostas neste momento. Defendem a nomeação de um 1º Ministro interino e que uma comissão de juízes faça uma imediata revisão da constituição e que eleições livres e gerais sejam convocadas para o parlamento e para a presidência. Poderia aceitar o moderado do Baradei na linha de frente desse governo provisório de união nacional.
Mubarak ainda não deu sinais, apesar da pressão popular, da opinião pública e mesmo das pressões norte-americana para uma transição mais abreviada, ainda que controlada, de que vai deixar o poder. Para isso nomeou um vice-presidente. Não poderia ter sido pior, pois indicou um tenente-coronel do exército, vinculado ao setor de espionagem e informações, um homem avesso à democracia e ao processo de transição, conhecido torturador. Parece-nos que isso seria uma decisão parecida com a que tomou o Xá do Irã, Reza Pahlevi em 1978, um ano antes de sua queda e fuga para o mesmo Egito atual, quando indicou um 1º Ministro chamado Shapour Baktiar. Mas, tal manobra não surtiu efeito, pois a partir de março de 1979, uma insurreição popular, dirigida pelos setores mais progressista da sociedade iraniana, derrubou o governo despótico do Xá.
Os jornalões brasileiros em particular, só despertaram para enviar correspondentes depois de quase um mês de manifestações e da queda do ditador tunisiano. Descobriram depois de 23 anos na Tunísia e 30 no Egito que ambos os países eram uma ditadura. Chamaram, até uma semana atrás, os respectivos ditadores Ben Ali e Mubarak de “presidente” (sic). E, mesmo quando enviaram correspondentes para a região, estes passaram a cobrir mais os que eles chamaram de atos de vandalismos e saques, desconsiderando o conteúdo político e mesmo revolucionário das manifestações.
Essa mesma imprensa, como diz Fisk, omite que tais saques e vandalismos são feitos por agentes e milicianos ligados ao governo Mubarak, chamados de battagi que em árabe quer dizer literalmente de “bandidos”. São, em sua maioria, ex-policiais, viciados em drogas. Como diz o competente jornalista Antônio Luiz Costa de Carta Capital, “a mídia Ocidental cobre os protestos do Cairo com muito menos entusiasmo do que os ocorridos em Teerã em 2009; protestos só interessam quando são pró-ocidentais e a democracia só convém quando a preferência dos eleitores coincide com os de Washington”. Uma conclusão correta e clara.
A legitimidade de um governo não provém e nem emana sempre das eleições ditas democráticas nos moldes que conhecemos no Ocidente. A prova disso é que a democracia norte-americana é uma farsa. Praticamente só dois partidos concorrem e só tem chance quem tem bilhões de dólares para pagar a propaganda nas mídias.
Gamal Abdel Nasser praticamente nunca foi eleito nos 16 anos que esteve á frente do governo do Egito. No entanto, era adorado pelos egípcios. As tarefas que ele executou, o conteúdo e o caráter de classe do Estado e do governo egípcios eram claramente antiimperialistas. Sua morte em 1970 levou um milhão de egípcios às ruas em seu funeral e outros milhões em todas as capitais árabes. Ele nunca foi chamado de ditador pela esquerda e pelo imprensa árabe.
Como diz Juan Cole em seu blog, o “estado nasserista com todos os seus problemas, teve legitimidade porque era visto como um estado para a grande massa dos egípcios, tanto para os de fora como os de dentro do país; o atual de Mubarak, é visto no Egito como um estado para os outros: EUA, Reino Unido, França e Israel e é um estado para poucos – os ricos e neoliberais”.
Isso vale para o presidente Bashar El Assad, da Síria. Ele “herdou” o governo de seu pai, Hafez El Assad, morto em 1999 (governava desde 1970). A Síria hoje é o país que mais enfrenta o imperialismo norte-americano, ao lado do Irã. Na sua capital, Damasco, grupos revolucionários, de esquerda, progressistas e patrióticos mantém livremente seus escritórios. É o país árabe que mais apoia a causa palestina. No entanto, as eleições ocorrem nos mesmos moldes que as egípcias. Não há comparação de um com o outro.
Na ciência política marxista costumamos dizer que o que assegura o caráter de classe de um estado pode ser respondida quando a seguinte questão estiver clara: contra quem (qual classe social) e a favor de quem age a máquina do estado. Respondido isso, sabe-se o caráter de classe de um estado. Não estou entre os que veem na democracia um valor universal.
Problemas para Israel. O fortalecimento do Irã
Também sobre isso não tenho a menor dúvida. Quem mais perde neste momento, nesta situação pré-revolucionária ou até mesmo revolucionária, a depender do andamento do processo, é Israel e seu governo reacionário de Benjamin Netanyahu. E essa opinião minha coincide com diversos analistas, em especial M. K. Bradakumar, do Asia Times. E ganha a República islâmica do Irã.
Mubarak é o principal parceiro de Israel. O Egito foi o primeiro país que assinou a paz em separado com Israel, seguido pela Jordânia. Nenhum outro assinou. Tecnicamente, Israel esta em guerra com a Síria e o Líbano, pois confiscou terras desses países (respectivamente as colinas de Golã e as fazendas chamadas de Shebaa). Entre os dias 27 de dezembro de 2008 e 22 de janeiro de 2009, Israel bombardeou sem pena nem dó a Faixa de Gaza. Matou a sangue frio 1,5 mil palestinos, dos quais dois terços crianças, mulheres e velhos, sob o pretexto de atacar o grupo Hamas, legitimo representante do povo palestino. Que fez Mubarak? Ao invés de abrir a fronteira de Gaza para deixar passar alimentos, remédios, materiais de construção pela cidade egípcia de Rafah, acabou fechando-a de uma vez, forçando milhares de palestinos a construir túneis na região de fronteira, reforçando o contrabando e encarecendo os preços.
Já temos notícias que dezenas de diplomatas israelenses e seus familiares já deixaram, há muito, o Cairo. Impera na chancelaria e em geral no governo israelense, um nervosismo excessivo. Isso foi registrado por diversos analistas. Israel sabe que um novo governo egípcio poderá romper o acordo de paz de 1979 e isso fará com que o estado judeu venha a ter que gastar muito mais em armamentos e despesas militares, pois há 32 anos ele desguarnece a fronteira Sul, com o Egito e concentra esforços com a front Norte do país, exatamente onde estão o Líbano, a Síria e Irã. Ruim para Israel isso.
Não tenho dúvidas que Israel vai ficando a cada dia mais isolado. E o Irã que não é um país árabe (é persa), se fortalece a cada dia. Senão, vejamos os motivos que elenquei:
Conclusões preliminares
É um jogo ainda em andamento. As cartas estão na mesa e os jogadores se posicionando, articulando. Não se pode prever exatamente os resultados. Mas quero arriscar alguns palpites:
De minha parte, espero, com sinceridade que avancem as massas populares, no rumo de uma verdadeira revolução democrática, popular, patriótica e nacional. Que avancem os partidos comunistas e socialistas e de feições populares, independente da confissão religiosa de seus dirigentes. São todos árabes, sejam muçulmanos ou cristãos e mesmo judeus dos 22 países árabes.
Termino este artigo com uma frase de Helena Cobban, de seu blog, muito ferino contra os EUA: “no caso da política de Obama para o OM, são cegos guiando cego e cegos aconselhando cego no salão oval da Casa Branca”, em uma clara alusão a Bill Daley, Ben Rhodes, Tony Blinken, Denis McDorough, John Brennan e Robert Cardillo, assessores e conselheiros de diversos cargos de Obama, todos, indistintamente, militantes fanáticos pró-Israel e à serviço do lobbyie judaico. Como diz elas, que venham os arabistas de Washington.
Egito: Não se Iludam. O inimigo são os EUA
Planejava escrever mais de um artigo semanal sobre o Oriente Médio (OM). Mas, tarefas outras me impediram. Mas mais do que isso, o rigor acadêmico, o excesso de leituras, certo perfeccionismo que me é peculiar, acabaram me impossibilitando. Acho que em três dias li pelo menos 50 artigos de diversas naturezas sobre o OM, todos anotados. Surge agora este segundo artigo, ao qual espero críticas de todas as ordens.
As ruas seguem tomadas
No momento em que escrevemos, as ruas e a Praça da Liberdade no Cairo seguem ocupadas, com barricadas, barracas espalhadas, controladas por comitês populares e revolucionários. Após 16 dias do levante de 25 de janeiro, muitos analistas e estudiosos achavam que o ânimo iria arrefecer. Que nada. Cresce a cada dia.
No entanto, como observador atento da cena do OM nos últimos 30 anos – que coincide com a ditadura de Mubarak – temos que ter uma certeza neste momento: a luta não é propriamente contra o ditador fantoche e seus apaniguados, mas contra o império norte-americano. Essa é a questão central. Trava-se ainda uma luta contra o modelo econômico neoliberal, em decadência – mas ainda forte na maior parte do mundo – que empobreceu imensamente as massas árabes e egípcias.
O levante revolucionário egípcio decorre de vários fatores. O principal deles é o esgotamento do modelo de completa subserviência de um ditador árabe aos interesses de potências estrangeiras – EUA, União Europeia e, principalmente, Israel.
É preciso registrar que, além da juventude árabe que esta sim na linha de frente, os sindicatos e os operários egípcios também estão nas barricadas. Agora mesmo os metalúrgicos que trabalham no estratégico Canal de Suez decretaram uma greve geral. Uma nova central sindical foi criada, passando por cima da oficialista e pelega ETUF (Egipcian Trade Union Federation). No bojo das lutas, os sindicatos dos profissionais liberais, que sempre foram fortes no Egito e na Tunísia, tomam a linha de frente do movimento, em especial médicos, engenheiros e advogados.são a principal força do movimento.
Papel do Egito
Desnecessário dizer que esse é o maior país árabe, com quase 90 milhões de habitantes. Ele é parceiro estratégico dos Estados Unidos. Mas o é da União Europeia e mesmo da China e Rússia. Mas, fundamentalmente, o Cairo faz o jogo do governo sionista de Israel. Desde pelo menos os acordos de paz de Camp David de 1979, patrocinados por Jimmy Carter e assinados por Anwar El Sadat e Menachem Beguin – posteriormente prêmio Nobel da Paz.
Essa parceria estratégica serve para asfixiar – ou pelo menos tentar asfixiar – o grupo revolucionário Hamás, que controla a Faixa de Gaza, bem como aos 1,5 milhão de palestinos que vivem nisso que é considerada a maior prisão aberta do mundo. Quando Israel fecha as fronteiras de Gaza, o Egito também colabora para isso, fechando a fronteira na cidade de Rafah. Isso asfixia os palestinos, impede a entrada de materiais de construção, medicamentos e alimentos. Os preços disparam, pois entram por túneis clandestinos.
Mubarak não deixará o poder de forma tranquila e pacífica, ordeira como querem seus aliados. A nomeação de um vice, depois de 29 anos é emblemático. Omar Suleiman, conhecido torturador e serviçal dos EUA e aliados, foi encarregado de tentar conduzir a transição. Concede entrevistas, garante a neutralidade das forças armadas e dialoga, inclusive, com a Fraternidade Muçulmana.
Nunca nos esqueçamos que o Egito tem a soberania do Canal de Suez. Parte fundamental de suas receitas nacionais vem das taxas cobradas pela travessia desse Canal. Por dia passam quase dois milhões de barris de petróleo, levados à Europa e aos EUA em imensos navios petroleiros. Isso não pode ser interrompido. Além do que, é preciso um grande país árabe para proteger os interesses de Israel.
Nos trinta anos em que Hosni governou a ferro e fogo o Egito, como títere dos norte-americanos, trouxe como consequência para o povo egípcio as piores condições de vida e trabalho e nenhuma democracia. Os partidos políticos são consentidos, só podem se candidatar quem o partido oficial, o Nacional Democrático de Mubarak permitir. A oposição consentida nunca fez sequer 20% dos deputados e 5% das eleições presidenciais nos últimos trinta anos.
Mubarak estagnou o maior país árabe nas três últimas décadas. Como diz Jean Pierre Lehman (OESP de 6/2/11, página A22), não há “regionalização” no OM e nem no Norte da África. Segundo dados do PNUD de 2001, há três carências básicas no Egito: de liberdade, de conhecimento e de poder feminino. No caso cultural, dados estarrecedores mostram que na década de 1960, editavam-se pelo menos três mil títulos no Egito e no ano passado, apenas 300 foram publicados (apenas 10%).
Nunca é demais lembrar que, com apoio expresso de Hosni Mubarak, Israel invadiu, nos últimos trinta anos, pelo menos cinco vezes o Líbano (na sua fronteira Norte). Como registra Ramez Maalouf, em 1982, Beirute foi a única capital árabe cercada, ocupada e quase destruída por Israel, que acabou matando e ajudando a matar mais de 25 mil libaneses.
A questão do Islã Político
Há décadas, como nos esclarece Pepe Escobar, que se coloca um sinal de igualdade entre democracia árabe = fundamentalismo islâmico. Para Israel, a igualdade que se coloca é de outra natureza. Fundamentalismo islâmico = terrorismo. Logo, democracia árabe seria igual a terrorismo. Ledo engano. Senão vejamos.
O grupo mais temido, a Irmandade Muçulmana (alguns preferem traduzir como Fraternidade) há décadas renunciou à violência e não oferece medo algum aos interesses dos ocidentais e suas potências. Diversos relatos nos informam que desde a década de 1950 houve tentativas de acordos e mesmo cooptações de líderes desse grupo político, que se mantém discreto na liderança das atuais manifestações de rua.
Na verdade, diversos autores têm claro uma coisa: o que Washington hoje teme não é uma revolução islâmica como a ocorrida no Irã em 1979. Eles sabem que não ocorrerá daquela forma. Praticamente não existe essa possibilidade. O que mais se teme hoje no Ocidente é o nacionalismo árabe, que sempre teve, inclusive, tendências socialistas (não marxistas). Esse nacionalismo secular sempre se colocou contra os acordos de Camp David. Para Chomsky, considerado um dos maiores intelectuais estadunidense da atualidade, Washington não aceitaria a soberania e a independência tanto do Egito como de qualquer país árabe, que pudesse se contrapor à Israel e aos seus interesses econômicos e energéticos na região.
Há um centro de disputa hoje na revolução árabe em curso. Nem é tanto quem a dirige, mas qual seu conteúdo, suas metas, suas tarefas e seus objetivos. Os americanos procuram, o tempo todo, controlar esse processo de transição. Sequestrar a revolução como se tem dito. Por isso não abandonaram Mubarak nos primeiros dias e ainda tentam achar uma solução negociada para a sua saída honrosa. Ele apega-se cada vez mais ao poder. Anuncia que fica até setembro, mas não se candidata e diz que seu filho, Gamal Mubarak, também não se candidatará. As massas rejeitam qualquer negociação com o ditador.
Mas, aqui entra o fator Omar Suleiman, o vice torturador (estima-se que trinta mil foram presos, torturados e uma parte foi, inclusive, mortas nas masmorras do regime). Ele poderia ter o apoio de parte do exército e de setores mais moderados do islamismo e contaria com a simpatia dos EUA. Seguramente, o Egito poderia não ser o mesmo subserviente à Washington, mas sob o governo desse general os interesses americanos e israelense poderiam ficar preservados. O apelido que as ruas árabes concederam a esse general foi “Sheik Al-Tortura”.
Vejam como pensa o professor Robert Springborg, da Escola de Pós-Graduação da marinha dos EUA: “os militares constituirão a sucessão. O Ocidente está trabalhando para isso. Estamos trabalhando em íntima união com os militares egípcios, para garantir que nada se altere no papel dominante dos militares na sociedade egípcia, na política e na economia”. Como diz meu colega e amigo sociólogo argentino, Atílio Borón, lembrando o escritor italiano Lampedusa, em seu Il Gatopardo (O Leopardo), tudo precisa mudar para que fique como esta!
Os grupos Hamás (palestino) e Hezbolláh (libanês), são considerados “radicais” e “terroristas” pelo Departamento de Estado dos EUA e pela União Europeia (o Brasil não os classifica assim). E por quê? Simplesmente porque lutam contra Israel e os Estado Unidos. O Hezbolláh em particular defende um Líbano independente e soberano e de armas em punho, luta para expulsar Israel de suas terras.
Há uma profunda diferença do Islã xiita e Islã sunita. Os sunitas sempre foram mais plurais em suas concepções. Sofreram mais influência do iluminismo europeu, que pregou, desde a revolução francesa, a separação da religião do estado. Para os xiitas, deus governa os seres humanos através da estrutura religiosa, enquanto que para os sunitas as pessoas governam e o governo pertence ao povo.
Na semana que passou, o líder religioso máximo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, no discurso da sexta-feira (dia 4/2/11) conclamou os egípcios a fazerem a sua revolução islâmica. Ficou falando sozinho, sem eco algum nas massas árabes, até porque, voltamos a insistir, não há indício algum de que a revolução em curso seja ou venha a ser islâmica. Até a Fraternidade Muçulmana teve que rejeitar esse discurso. Eles reafirmaram que a revolução em curso é nacional e patriótica e mesmo secular.
As implicações em Israel
Também não devemos ter ilusões. A luta dessa revolução árabe é contra os Estados Unidos, mas é fundamentalmente contra Israel. Trata-se de preservar – ou não – os acordos de paz de 1979. E Israel – não temos como não reconhecer isso – encontra-se isolada e com os nervos à flor da pele. Senão vejamos.
A diplomacia israelense – por incompetência ou convicção mesmo, sabe-se lá – ainda continua achando que somente Mubarak e seu círculo íntimo poderia promover o processo de transição pacífica do regime e ele estaria comprometido com a paz. Nesse sentido, diversos parceiros históricos de Israel, como o ex-primeiro Ministro da Inglaterra, Tony Blair, defenderam que Mubarak continue no poder. Estranha-nos a posição nesse sentido de Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina. Não é à toa, como diz Luiz Antônio Costa (Carta Capital de 9/2/11), que a direita americana critica Obama por abandonar Mubarak, aliado que consideram histórico. Veem o abandono do aliado como uma péssima sinalização que os EUA enviam a outros governos árabes amigos de Washington.
Acerta Ury Avnery, um dos maiores escritores israelense e do Bloco de Paz em Israel (Gush Shalom), de quem sou leitor fidelíssimo, quando diz “estamos passando por um evento geológico. Um terremoto de vastíssimas dimensões, que esta mudando a paisagem no OM. Montanhas viram vales, ilhas emergem do mar e vulcões cobrem a terra de lava”. E ele esta certo, na descrição com suas poéticas palavras da revolução árabe em curso.
Não há como Israel não se sentir cercada, isolada e com nervos à flor da pela. De forma resumida, eu daria pelo menos os seguintes motivos para isso:
Plataforma da Oposição e Nomes da Transição
Circulam pela Internet, sites, blogs, revistas especializadas, dezenas de propostas de uma possível plataforma que seria o melhor, do ponto de vista das massas árabes, que vem sendo discutida amplamente em círculos diversos, sejam partidos opositores, entre os jovens árabes e suas entidades e nas mesquitas, meios acadêmicos e sindicais. Faço a seguir, para nossos leitores, um resumo dos cinco e mais importantes desses pontos reivindicados:
Como já registramos em artigo anterior, não há lideranças claras e ostensivas do movimento revolucionário, até para que se preservem da repressão brutal. No entanto, conversações que vem ocorrendo falam em um comitê interino de sábios e intelectuais, em sua maioria sem vinculações com religiões, de até 40 nomes, que pudesse fazer a pequenas reformas constitucionais para que se possam proceder às eleições imediatas. Diversos artigos da atual constituição impedem o registro de determinados partidos e/ou candidaturas.
Apenas para efeitos de registro, transcrevo alguns desses nomes que vêm sendo veiculados e seus respectivos currículos e denominações:
Bem, estes seriam alguns dos nomes para a equipe de transição que pode ser constituída a qualquer momento no Cairo, com vistas à democratização geral do país.
Algumas conclusões
As coisas no OM estão acontecendo com tamanha velocidade que algumas opiniões e/ou propostas ficam completamente caducas de um dia para outro. No entanto, como estudioso e analista internacional, quero, à guisa de auxiliar nossos leitores em uma interpretação a mais próxima da realidade da região, apresentar aqui minhas conclusões para este momento histórico que vivemos:
Reflexões sobre o Egito pós-Mubarak
Conforme mais ou menos previsto, após um suspense de 20h entre a noite de seu pronunciamento na TV estatal no dia 10 de fevereiro passado, finalmente Hosni Mubarak resolveu renunciar, passando o poder do Estado egípcio para as mãos do Alto Comando das Forças Armadas do país. Dito de outra forma, a continuidade se dá na forma de um golpe militar. Repercussões de grande monta e quero compartilhar com meus leitores muitas reflexões que fiz nessa semana a partir de análises e leituras sistemáticas que realizo.
O Egito depois de Hosni
Já se falou que as ditaduras dos países árabes – honrosa exceção da Palestina – são na verdade de dois tipos de monarquias. Uma do tipo absolutista, onde nem sequer parlamento funciona e o rei, o sheik, o emir, o sultão, o príncipe ou qualquer outro nome que tenha o cargo manda de forma total e absoluta. As outras são monarquias “constitucionais”, por assim dizer, ou seja, apresentam-se como “repúblicas”, possuem presidentes “eleitos”, que muitas vezes se eternizam no poder, como Muammar Khadafi, da Líbia que governa o país “republicano” há “só” 42 anos ou indicam seus próprios filhos para sucedê-los.
No último e histórico dia 11 de fevereiro, às 14h no Cairo (18h no horário de Brasília), a Praça Tahrir (Libertação em árabe) virou uma festa. Havia sido anunciado, num comunicado lacônico de 50 palavras, pelo “vice” presidente, Suleiman, que Hosni Mubarak havia deixado a presidência que seria agora entregue a um “conselho supremo militar”, uma espécie de junta governativa, composta por nove generais, marechais e brigadeiros, todos – sem exceção – nomeados pelo ditador que “deixava” o poder. Ele e seus prováveis 50 bilhões de dólares depositados em contas numeradas na Suíça (que, aliás, já se dispôs a bloquear todos esses recursos).
Um novo quadro se abriria a partir daí. Num primeiro momento, a população ficou feliz, comemorou, fez festa, dançou e cantou. Fez congraçamento com soldados e oficiais do exército, que estavam acantonados na Praça desde 25 de janeiro. No entanto, num segundo momento, as lideranças, partidos e organizações de massa que conduziram a luta do povo – que a imprensa insiste em dizer que “não havia líderes” – deram-se conta que o ditador na verdade não havia caído. Apenas deixou o poder, transferiu-o para gente de sua absoluta confiança. Junta militar sob a coordenação do Marechal de Campo Tantawi, fiel serviçal do ditador (conhecido como poodle de Mubarak) e defensor dos acordos de paz com Israel e militar com os EUA. Avesso a qualquer reforma democrática. Sabe-se que ele é muito próximo do reacionário e conservador Robert Gates, chefe do Pentágono.
Uma junta que passou a governar por comunicados, numerados, como se fossem boletins de juntas médicas que relatam a agonia dos pacientes nos hospitais. Os egípcios deram-se conta de que poderia até ter caído o ditador, mas o regime dava fortes sinais de que continuaria. Pouca ou quase nenhuma alteração havia sido feita. O governo interino, provisório, de civis e de lideranças e de entidades havia caído por terra. Não se fala mais nisso.
Num dos comunicados da junta militar são concedidos 10 dias de prazo para uma comissão de notáveis juristas, de oito membros (sendo um cristão coopta), para emendar a velha e carcomida constituição de forma a ser referendada em 60 dias e novas eleições seriam convocadas a partir disso. Não se fala em constituinte. Nenhum preso político – os milhares antigos e as centenas de novas prisões dos 18 dias de lutas – foram libertados. Nada de anistia. Estado de emergência – que permite prisões sem mandato por tempo indeterminado – continua sem ter sido modificado. Partidos políticos banidos seguem sendo proibidos, em especial os socialistas, comunistas e a Irmandade Muçulmana, pintada como o pior dos males a ser evitado.
Comentários e Desdobramentos
Como sempre, a efígie de Obama moveu-se. Acabou por apoiar a solução, de toda altamente interessante para os EUA. É preciso registrar que nos 18 dias de luta revolucionária do povo egípcio, em nenhum pronunciamento – quase que diário – do presidente dos Estados Unidos, a palavra “eleições livres” foi utilizada. Nem pela senhora Clinton ou pelos porta vozes da Casa Branca. Essa é a concepção estadunidense de democracia. Só serve quando o ditador lhes é amigo, não importa se as eleições são de fachada ou que a democracia inexista. Como diz Pepe Escobar, o grande sonho americano, teria sido implantar no Egito algo parecido com o modelo paquistanês, com elites compradas, um islã político moderado, uma inteligência militar e um general ditador.
Sem exceção, todos os governos árabes pró-americanos da região, segundo o Prof. Sami Moubayed, em artigo no Asia Times (9/2), tem como características em comum:
Uma revolução em curso?
Um debate que já se coloca no momento, em especial na esquerda marxista, é se esta em curso no Egito uma revolução ou não. Como disse Lênin, as condições objetivas para que uma revolução aconteça é que “os de cima não mais conseguem governar como antes e os de baixo já não aceitam ser governados como antes”. Assim, objetivamente falando, há uma situação revolucionária criada no Egito. Resta-nos saber para que rumo ela pode pender neste momento e qual será mesmo o seu caráter.
Nesse sentido, entendo que as causas objetivas do processo revolucionário, com pitadas de subjetividade por assim dizer, podem ser assim resumidas:
De meu ponto de vista, há sim um processo revolucionário em curso. Sua liderança vem sendo disputada, basicamente entre três campos distintos. Um deles – ainda que defenda uma linha mais nacional e secular – tem estilo e propostas mais conservadoras. Como dizia o romance de Giuseppe Tomasi Lampedusa, O Leopardo, “é preciso mudar para que tudo fique como está”. Tem forte presença militar e não alteraria o status quo em vigor, qual seja, de manter o Egito sob completo domínio dos Estados Unidos, como país estratégico em termos de área de influência americana e que protegeria Israel na região.
Uma segunda linha, de caráter mais religioso, constitui de certa forma um outro campo. Pode ser polarizado pela Irmandade Muçulmana, fundada em 1928 e que esta proscrita no país desde 1952 quando Gamal Abdel Nasser assumiu o comando do país. Quase não esteve na linha de frente dos protestos, mas é muito forte no país, pela assistência social que pratica. Com candidaturas avulsas ou por outros partidos, conseguiu, nas eleições de 2005, fraudadas, ainda assim, fazer 20% das cadeiras (algo como uns 80 deputados). Esse parlamento foi dissolvido pela junta militar. Analistas estimam que em eleições diretas eles poderiam chegar a 30% dos votos. Tem vies fortemente conservador em termos de costumes, ainda que possa abraçar a causa nacionalista.
Por fim, há um campo que chamamos de nacionalismo laico, de caráter mais progressista e popular. Ele talvez pudesse reeditar o que um dia se chamou de pan-arabismo, criado por Nasser. Esse campo, ainda não de todo unificado, englobaria as organizações sociais de massa, de jovens, mulheres e sindicatos combativos, partidos mais progressistas, os socialistas e comunistas. Uma plataforma mais avançada chegou a ser esboçada por diversas organizações desse campo, mas ainda não pode ser implantada pela passagem do poder aos militares. Até setores do Islã que não defendem o estado islâmico (sunitas), poderiam fazer uma composição que fortalecesse esse campo. Não é de todo impossível que os muçulmanos se aliem a esse terceiro bloco, se unificados forem para as eleições presidenciais. Como afirma Pepe Escobar, "a revolução egípcia não seria violenta, sectária, islâmica e hierárquica”.
Quanto à questão que a mídia propagou de uma revolução sem “lideranças” e mais de Internet (absurdo isso, até porque menos de 20% da população tem acesso à internet e apenas um terço possuem celulares), do Facebook e do Google como chegaram a dizer, o Bloco Patriótico e o Bloco Democrático, que reune mais de uma dezena de grandes partidos e entidades, apresenta, de forma resumida, a seguinte plataforma que os unifica:
De fato, tal programa, bastante avançado para o Egito e a região como um todo, unificaria todas as forças patrioticas e populares egípcias. Mas, como um ou outro desses dez itens contemplados, os militares não dão nenhum sinal de que concordam com esse programa de transição. A vida e a história vai nos comprovar se essa Revolução Árabe terá mesmo um caráter progressista, popular e mesmo socialista. No momento, as coisas ainda não estão claras qual linha será seguida.
De uma coisa pelo menos estamos de acordo: a liderança do movimento procurou ser ampla, sem sectarismo, envolvendo todas as tendências, forças políticas e religiões, ainda que discordando dos militares, nunca fechou as portas para o diálogo, organizou amplas paralisações do trabalho e em fábricas estratégicas (como veremos a seguir) e usou adequadamente as comunicações eletrônicas em seu benefício (mensagens de celulares e Internet com as redes sociais).
O papel dos Trabalhadores e dos Sindicatos
Durante os quase trinta anos da ditadura de Mubarak, os sindicatos foram controlados a ferro e fogo. A central sindical oficial é extremamente moderada e pró-governo. Chama-se ETUF, que na sigla inglesa quer dizer Egipcian Trade Union Federation. Tal entidade não convocou nenhuma manifestação durante as mobilizações populares e em 27 de janeiro chegou a emitir uma nota dizendo que faria de tudo para “conter os protestos dos trabalhadores”.
Houve um racha no movimento sindical e uma nova organização surgiu nas lutas, capitaneadas pelos sindicatos independentes de servidores públicos, da área da saúde e alguns de origem operária. Desse movimento, surgiu a Federação dos Sindicatos Independentes do Egito. Os sindicatos de profissionais liberais – que são fortes nesse país e possuem modelo parecido com os que temos no Brasil – estiveram na linha de frente das manifestações. Em especial os sindicatos de médicos, advogados e engenheiros. A prova da força desses sindicatos é a nota da Junta Militar, em seu 5º comunicado, que exorta aos trabalhadores “operários e aos profissionais” a que voltem ao trabalho e encerrem as greves.
É preciso destacar que num processo revolucionário geral que vive hoje o Egito, isso também se verifica na esfera sindical. A maioria dos sindicatos são controlados por sindicalistas ligados ao Partido do ditador Mubarak, o Nacional Democrático. Nesse processo, sindicatos foram ocupados e muitas direções foram destituídas. Novas entidade foram formadas.
A grande imprensa escondeu, durante a maior parte do tempo, essas mobilizações operárias e proletárias em geral. Mas, foram registradas grandes mobilizações dos operários têxteis da região do Delta do Nilo na cidade de Mahalla, com milhares de operários (a maior concentração operária do Norte da África e mundo árabe); trabalhadores em telecomunicações se mobilizaram; bem como os do setor de limpeza; professores universitários decretaram greve geral; jornalistas tomaram de volta seu sindicato histórico; ferroviários paralisaram atividades; fábricas e instalações industriais foram ocupadas; federação dos aposentados saíram ás ruas. Tudo isso, de modo geral, podemos dizer que o processo revolucionário em curso chegou às fábricas e locais e de trabalho. Vários comitês revolucionários foram criados no processo.
Os operários das cidades de Suez, Port Said e Ismaillia, metalúrgicos e siderúrgicos paralisaram a produção. Os seis mil trabalhadores públicos do Canal de Suez cruzaram os braços. Nessa região concentram-se grandes estaleiros, que interromperam suas atividades. Operários das empresas de Carvão e Cimento, no distrito de Halwan também suspenderam o trabalho. Papel de destaque tiveram os petroleiros, que desafiaram o ministro do Petróleo, Sameh Fahmy. São operários da estatal PetroTrade Companhy e as Petroment e Syanco. Ferroviários exigiram a participação nos lucros das empresas. Os motoristas e condutores das empresas públicas de ônibus do Cairo aderiram ao movimento paredista. Enfim, pode-se dizer que o processo em curso contou com elevada participação do proletariado egípcio.
As reivindicações gerais das organizações sindicais em luta podem ser resumidas em: 1. Direito ao Trabalho; 2. Salário Mínimo de 150 Euros; 3. Direito à Proteção Social (moradia, educação, transportes e saúde de boa qualidade); 4. Liberdade Sindical e 5. Libertação de todos os presos, em especial, sindicalistas.
Do ponto de vista da solidariedade operária e proletária internacional, devemos somar nossas vozes do sindicalismo classista com a revolução no Egito, gritando em alto e bom som: Tirem as Mãos do Egito! Abaixo o Imperialismo! Solidariedade com a Revolução Egípcia! Nossos corações de trabalhadores batem forte com os egípcios. Como diz o blogueiro egípcio Honam El Hamalawy, “agora as fábricas têm que ocupar a Praça Tahrir”.
Autores que merecem registro
Como sempre fiz semanalmente para produzir meus escritos sobre OM, leio dezenas de artigos que nos chegam (em especial pelo coletivo de tradutores da Vila Vudu). Outros são mesmo autores nacionais. Compartilho com meus leitores alguns comentários com os quais me identifico:
Gilbert Achcar, da School of Oriental and African Studies de Londres, que diz “para impor mudança tão ampla, o movimento de massas egípcio teria que quebrar a espinha dorsal do regime, que é o seu exército”. E, claro, não há a menor condição de que isso ocorra. A tomada da “Bastilha” egípcia não aconteceu. Pelo menos não por enquanto.
Nabil Shawkat do Ahram Online, que diz “o espírito do governo de Hosni Mubarak, a essência de seu regime, seus métodos estão longe de acabar”. Isso reforça o que dissemos anteriormente, qual seja, que o ditador caiu mas as mudanças do regime foram pontuais.
Immanuel Wallerstein (citado por Antonio Luiz M. C. Costa, de Carta Capital de 16/2, pág. 39), “os EUA, aflitos para ficar ao lado dos vencedores, mas sem saber exatamente quais serão e sem querer perder o apoio dos ditadores e monarcas absolutos de que ainda julgam precisar, fazem do Irã e da Turquia os dois maiores ganhadores com o processo revolucionário que agita os países árabes”.
Aqui é preciso registrar ainda – comentário que li em diversos ensaios – que duas grandes “teorias” caíram por terra com esse processo revolucionário egípcio. A primeira, que já estava praticamente morta, de Francis Fukuyama, com o livro “O Fim da História”. E a segunda, de Samuel Hungtinton, com o “Choque de Civilizações”. O primeiro de 1989 e o segundo de 1996 – li ambos, sendo que o segundo, ainda em inglês, na Foreing Affairs publicado em forma de artigo – com o título Clash os Civilization.
Por mais que Obama e seu antecessor Bush (filho) falem em “levar democracia para o mundo árabe”, as suas duas e desastrosas experiências desse processo dito democrático, feito na bala e com bilhões de dólares de gastos e milhares de vítimas americanas estão sendo vividas há oito anos no Iraque e há dez anos no Afeganistão. O Egito, com todas as limitações da junta militar, deve aprofundar a sua democracia num prazo máximo de um ano, como jamais se viu em toda a sua própria história moderna. Isso, sem dúvida, deixa a tríade Washington, Riad e Telavive em completo desespero.
Não nos esqueçamos jamais que tanto o governo israelense de Benjamin Netanyahú, como a monarquia absolutista e pró-americana da Arábia Saudita, trabalharam dia e noite, de forma incessante, para que Hosni, seu queridinho, seguisse à frente do governo egípcio. Foram fragorosamente derrotados.
Algumas conclusões
Como faço sempre, nesses artigos mais analíticos que tenho produzido, apresento aos leitores algumas conclusões. São elas:
Revolta ou revolução árabe?
Neste novo artigo não comentarei mais e apenas sobre o Egito. As massas árabes ocupam as ruas do Bahrein, de Trípoli na Líbia, da Argélia e outras capitais árabes. O que faremos esta semana é comentar a discussão teórica do título acima, dar um panorama geral dos países do Oriente Médio e ao final, dar algumas opiniões – ainda que iniciais – sobre a Líbia e as tradicionais conclusões.
Uma revolução em curso
Nossa formação de esquerda e marxista praticamente nos ensina que o termo “revolução” esta relacionado diretamente com a tomada revolucionária do poder, mudanças profundas na estrutura de direção do estado de um determinado país e, fundamentalmente, de troca da classe social que manda no país. Ou seja, mudanças na superestrutura, na economia, na ideologia, nos costumes etc.
O termo “revolução” foi usado de forma equivocada, para confundir as massas – e parte dos setores esclarecidos de nossa sociedade embarcaram nesse equívoco – em nosso país, na época da ditadura militar que se instaurou no Brasil em 1º de abril de 1964 (dia da mentira, mas até nisso eles disseram que foi a “Revolução de 31 de Março”). Falso. Aquilo foi sim um golpe militar, de estado, que derrubou um governo constitucional, eleito democraticamente pelo povo brasileiro. Uma quartelada. Nada tem a ver com um processo revolucionário.
Mas e no Oriente Médio, no mundo árabe, onde vivem 400 milhões de cidadãos em 22 países, o que esta havendo por lá mesmo? Uma “revolta”? uma “insurreição”? uma “rebelião”? De meu ponto de vista, tudo isso esta acontecendo por lá. Mas esta sim em curso uma revolução nesse mundo. Qual o caráter que terá essa revolução é que no momento não é possível prevermos. Será essa revolução meramente democrática e patriótica? Será uma revolução mais avançada, de caráter mais popular e progressista? Ou chegará a ser até socialista, alterando profundamente o modelo econômico dos países, que hoje são todos capitalistas de inspiração neoliberal (financeirização do capital).
Quando o camarada Wladimir Ilich Oulianov, que entrou para a história como Lênin, líder da Revolução Bolchevique de Outubro de 1917 tratou desse tema, dois anos antes desse histórico acontecimento ele estabeleceu claramente as condições objetivas para que uma revolução pudesse ocorrer em um determinado país. E isso é uma das conquistas do pensamento científico marxista, sobre as leis gerais das sociedades humanas. Essas condições objetivas ocorrem quando “os de cima não conseguem mais governar como antes e os de baixo não aceitam mais ser governado como antes”. Isso pode ser lido no texto “Bancarrota da II Internacional”, escrita entre ente maio e junho de 1915.
Dito de outra forma, ele diz que essas condições objetivas são decorrentes de questões relacionadas com a materialidade da vida das pessoas. Isso pode ser o elevado desemprego, a fome e a miséria elevados, ausências de liberdades, arrocho salarial, repressão política etc. Tudo isso não determina, ainda assim, que as condições subjetivas para que a revolução aconteça estejam dadas. É preciso que ocorram combinações entre as condições objetivas e as subjetivas. Estas últimas guardam uma relação direta com a necessidade de uma liderança política revolucionária – aqui entra a necessidade de um partido de feições revolucionárias, detentor de uma teoria revolucionária, que dê uma direção correta para as amplas massas – e também o nível de consciência política das amplas massas.
Se apenas as condições objetivas fossem suficientes para que uma revolução de caráter mais socialista, por exemplo, ocorresse, a Índia, Paquistão, Afeganistão e tantos outros países extremamente pobres já seriam os países mais socialistas do mundo. E não são. Faltam-lhes as condições subjetivas, um partido avançado com uma teoria revolucionária.
Dito isso, eu prefiro, indubitavelmente, usar o termo Revolução Árabe. O seu caráter mais geral vai depender das lideranças que a conduzem – pulverizadas por vários países – e os compromissos e suas tarefas que ela deve assumir. No caso do Oriente Médio, vai parecendo, vai ficando mais claro, que haverá um afastamento dos laços com o Ocidente, podendo haver até, em alguns países, rupturas com a política estadunidense na região e completo afastamento de Israel, colocando esse país sionista, discriminador e religioso em completo isolamento. Se o Egito e a Jordânia forem forçados pelo seu povo a romperem os tais “tratados de paz” com Israel (na verdade são tratados que garantem a segurança de Israel nas fronteiras desses países com o estado sionista para simplesmente fazer com que as chamadas Forças de Defesa de Israel se fortaleçam em outros lados de outras fronteiras, em especial com a Síria e o Líbano). Cito aqui Kathleen Christison, do Counterpunch que diz (16/2), sobre o Líbano e Jordânia que não jogam e nunca jogaram papel na região, “eles contam para os EUA, como países para ajudar a manter a calma na região de fronteira com Israel e só tem valor para a segurança de Israel e nada mais”. Como certa vez disse Aaron David Miller, negociador para o OM de Clinton, “os EUA fazem exclusivamente o papel de advogados de Israel”.
Vai me parecendo, salvo melhor juízo, que há sim um processo revolucionário em curso, com caráter anti-colonial, democrático e progressista geral, mas que ainda esta com a sua liderança em disputa. E essa disputa, diga-se de passagem, não é com ninguém menos que a maior potência política, militar e econômica do planeta, os Estados Unidos. Tal revolução ou revoluções – são vários países em processo avançado de mudanças – nada tem a ver com as que ocorreram no leste europeu, que tinham nome de cores inclusive (Laranja, de Veludo, Rosa e outras bobagens mais). A imprensa burguesa chegou a querer classificar até esta revolução de “Jasmim”, em uma alusão à flor mais famosa da região.
Não tenho dúvidas – e me identifico com Santiago Rico e Alma Allende (leiam no site Relión.org no seguinte endereço http://www.rebelion.org/noticia.php?id=123027) – que o processo em curso abre para todas as esquerdas, em especial a socialista, as patrióticas e panarabistas em geral. Uma janela que poderá trilhar um caminho verdadeiramente avançado, progressista, patriótico, anti-colonial, antiimperialista. Se um dia voltará a trilhar como no passado de Nasser, o caminho socialista, a vida e a correlação de forças vai determinar. Creio que essa revolução em curso é a continuidade da que ocorreu em 1952, que mudou os rumos do mundo árabe, mas foi interrompida depois de 40 anos, sendo retomada agora. Aquela revolução árabe e egípcia foi liderada pelo então coronel Gamal Abdel Nasser, que viria a ser o maior líder e ídolo das massas árabes até sua morte em 1970.
Certa vez, perguntaram para Chu En Lai, grande líder com Mao Tsé Tung da Revolução Chinesa de 1949, o que ele achava da Revolução Francesa de 1789. Tal pergunta foi feita nos anos 1970. A sua resposta, como bom chinês, foi “ainda é cedo para dizer” (citado por Stephen M. Walt, no OESP de 20/12, reproduzindo a Foreign Police). Eu adotaria essa extrema prudência para fazer afirmações peremptórias sobre o Egito e outros países árabes sacudidos pelas revoluções. É preciso dar tempo ao tempo para vermos mesmo os rumos que tomarão essas revoluções árabes.
Como afirmou há mais de 40 anos o conceituado cientista político (mas polêmico também), Samuel Huntington, já falecido “a mudança social e econômica, a urbanização, o aumento da alfabetização e da educação, a industrialização, a expansão dos meios de comunicação, aumenta a consciência política, multiplica as demandas políticas, amplia a participação política”. Se adicionarmos a tudo isso as redes sociais, às tecnologias, aos celulares, tudo isso coloca em movimento forças sociais poderosas e que contribuem para esse processo revolucionário.
Encerro esta parte do artigo com uma citação do The Observer (na Carta Capital, 23/2), de Peter Beamont, que diz que “é possível que estejamos testemunhando o nascimento de um novo tipo de política revolucionária que não é definido pelos protestos maciços das massas nas ruas, mas pela maneira como os participantes se reuniram”.
Um panorama do Oriente Médio
Meu primeiro artigo desta nova fase de estudos e pesquisas sobre o mundo árabe, para a Fundação Maurício Grabois, tinha um sugestivo título: “A Terra Treme no Oriente Médio”. Não vejo de outra forma. Governos fortes e impávidos até outro dia, desmoronam de uma hora para outra. Monarquias balançam. Reis, sultões, príncipes dormem apavorados em seus palácios luxuosos com medo das massas. Alguns, como Kadafi, ordenam abrir fogo e bombardear seus povos.
Egito – A situação esta mais calma. Pelo menos na aparência. É bem verdade que as leis do estado de emergência ainda não foram revogadas. No entanto, o parlamento já foi dissolvido e a constituição velha e arcaica foi suspensa pela junta militar. Uma comissão de oito juristas foi nomeada. Destacam-se o seu chefe, Tareq El-Bishri, um sunita; Sobhi Saleh, muçulmano vinculado à Fraternidade Muçulmana, xiita e Mahrer Youssef, um cristão copta e mais cinco outros eminentes juristas. Esta se esgotando o prazo de dez dias para eles apresentarem sugestões de mudanças constitucionais, para ir à referendo popular, que vai permitir eleições livres e – espera-se – democráticas até o final do ano no Egito.
Quando Gamal Abdel Nasser governou o Egito, de 1953 até sua morte em 1970, esse país integrava a órbita da antiga União Soviética. A constituição egípcia tinha a palavra “socialista” no nome do país e procurava-se dar essa orientação. A reforma agrária anti-latifundiária foi realizada, mais de 300 estatais foram criadas – como as de telecomunicações, petróleo, energia em geral – estavam sob controle do estado. Já em 2007, Mubarak encarregou-se de uma ampla reforma, retirando o termo “socialista” da constituição. O país vivia o auge do modelo neoliberal, chegando a demitir desse ano até 2010, mais de 700 mil servidores públicos e privatizou mais de metade das estatais. Se na época de Nasser o slogan dos baatistas era “uma nação árabe com uma missão imortal”, elevando o sentimento e a consciência patriótica do povo egípcio, nos 31 anos de Mubarak as coisas foram gradativamente sendo desmontadas da era Nasser. O país passa a integrar a órbita dos EUA, seu exército se afasta do povo e passa a receber quase que dois bilhões de dólares por ano, para se equipar e defender a segurança de Israel, na sua fronteira com a Palestina, em especial a Faixa de Gaza. Se pudesse escolher hoje, ficaria com o slogan da Frente Popular de Libertação da Palestina – FPLP que é “Uma Nação árabe, no caminho da libertação”.
A penúria da nação e do povo árabe é profunda. Desde a morte de Nasser, seja no Egito, seja em outros países árabes – com raríssimas exceções, como o Iraque e a Síria – a riqueza desses países, em especial o seu petróleo, nunca foi utilizada em benefício dos seus povos. Os governantes nunca se preocuparam com a miséria, o desemprego dos seus povos. Praticamente toda a renda do petróleo fica no Ocidente, com bancos e banqueiros que engordam seus lucros em detrimento das massas árabes. Tudo isso sem falar nas famílias dos monarcas e governantes árabes, traidores de seus povos, que gastam fortunas, bilhões de dólares em Londres, Paris, Las Vegas e outras cidades.
Como já disse, não sabemos ainda os rumos que a revolução egípcia tomará. Há profunda insatisfação das massas e das lideranças da oposição com o “novo” governo, completamente tutelado pelos militares, pelo tal Comando Supremo das Forças Armadas, que ainda não libertaram milhares de presos políticos, não legalizaram os partidos políticos, não asseguram amplas liberdades de imprensa etc.
Para isso, como diz meu colega sociólogo americano, James Petras (no Rebelión de 20/2), falta uma liderança política nacional e forte ligada aos movimentos sociais e sindicais, para ajudar na condução do processo mudancista. Com isso, os espaços foram sendo ocupados por figuras de uma oposição mais moderada e reformista, que tende a fazer certa composição com os militares (vide Wael Ghonim, alto executivo do Google, de 30 anos, ligado ao grupo denominado Frente Nacional para a Mudança, Kefaya – em árabe “Basta!”), que é vinculado à Mohammad El Baradei (ex-presidente da Agência Internacional de Energia Atômica e Nobel da Paz), de linha mais moderada e que tenta manter um diálogo com os militares.
Nesse sentido, ele conclui que não é nada casual o fato de que os grandes meios de comunicação de massa alardeiam aos quatro cantos na sua cobertura jornalística dessa revolução árabe que as coisas acontecem “espontaneamente” (sic). Por isso também é melhor e mais cômodo para eles a chamarem de “revolta”, de “rebelião”, de “levante” e mesmo de “insurreição”. Ele registra que nem o Mossad, nem todos os 27 organismos de inteligência dos EUA foram capazes de detectar esse levante popular, bem organizado que contou com o decisivo apoio dos sindicatos árabes mais combativos, com as organizações de jovens, de estudantes e de mulheres, bem como de intelectuais, juristas, e profissionais liberais. Bem organizados.
Bahrein – É um micro estado. Pouco mais de um milhão de habitantes, menos que 200 mil nascido no país, mas um verdadeiro potentado americano encravado bem na entrada do Golfo Pérsico-Arábico (prefiro usar esse termo quando me refiro ao Golfo Pérsico, pois metade de sua costa é arábica). Lá esta estacionada a V Frota Naval dos Estados Unidos. Esse país, que é um conjunto de pequenas ilhas, fica bem na entrada desse imenso Golfo, por onde passam cerca de 40% de todo o petróleo consumido no planeta. Um local altamente estratégico.
A mídia tem sido dominada pelos acontecimentos da Líbia (que comentarei a seguir), mas as imensas manifestações na capital do país, Manama, são estratégicas. Derrubar essa monarquia de mais de 200 anos da família Al Khalifa é altamente danoso para os interesses norte-americanos em toda a região. E também para a Arábia Saudita e Israel. O monarca é sunita em um país que 70% das pessoas são xiitas. Se houver uma mudança no poder, o Irã se fortalece imensamente na região. Isso é tudo que EUA e Israel não podem aceitar jamais. A grande perdedora será a Arábia Saudita. Podemos dizer que esse país ajuda a que os EUA sirvam como um verdadeiro cão de guarda desse estratégico Golfo.
Aqui uma observação. Apesar de eu ter acima mencionado as diferenças entre muçulmanos, de linhas religiosas distintas, sigo convencido de forma clara que a questão central em todo o OM não é e nunca foi religioso. Claro que o componente religioso pode existir, mas os conflitos são essencialmente políticos. São disputas territoriais, coloniais, de recursos energéticos e hídricos, controles territoriais. Nesse sentido, um elucidativo artigo de Robert Fisk (The Independent, 20/2), ele menciona “se são revoltas seculares, porque só se falam das religiões?”. Até esse jornalista inglês fica espantado com isso. Não tenho dúvidas que isso faz parte de uma estratégia midiática – todos os meios de comunicação de massa, quase que sem exceção servem ao sistema e ao império norte-americano – para tentar mostrar o pano de fundo dos conflitos no OM como religioso, para enganar as massas e, mais do que isso, indispor bilhões de pessoas contra uma das maiores religiões da terra que é o Islã.
Como diz o blogueiro árabe Assad Abu Khalil, no seu blog The Angry Arab (citado por Escobar, do Asia Times de 19/2), “os EUA tiveram que apoiar a repressão violenta no Bahrein para acalmar a Arábia Saudita – vizinho desse país – e outros tiranos árabes furiosos pelo fato de Obama não ter defendido Hosni Mubarak até o fim”.
Líbia – É a bola da vez, é a próxima peça do dominó que cairá. Chegou a vez do ditador Muammar Kadafi ser derrubado pelas massas árabes. Não pretendo aqui contar a história do jovem coronel de 27 anos que, em 1969, derrubou o rei Idris (1951-1969). Não há espaço e tempo para falar do Livro Verde de Kadafi, copiado descaradamente, em alguns trechos do Livro Vermelho de Mao Tsé Tung. O fato é que hoje o ditador líbio vem perdendo apoio de seu povo. Desgastes de 42 anos de poder, família ficou bilionária, seus filhos gastam milhões de dólares nas festas familiares – um deles, o mais jovem, Saif, gastou no natal dois milhões de dólares para a cantora Bioncé cantar apenas cinco músicas para um grupo de amigos e seus familiares de 50 pessoas.
Ao que tudo indica, correrá muito sangue. Talvez esta venha ser a parte mais ensanguentada das revoluções árabes. Mas a vez de Kadafi chegou. Já se fala em mais de mil mortos. Kadafi deu ordens expressas para que seu exército pessoal fuzile diretamente os manifestantes nas principais cidades. Autorizou que a força aérea e seu caças bombardeiem diretamente o povo nas ruas e nas praças. Isso gerou duas deserções de aviões caças MIG (soviéticos) que foram parar na Ilha de Malta e dois outros pilotos, ao receberem a ordem de bombardear, preferiam ejetar-se de seus cop-kits e deixaram que suas aeronaves espatifassem no solo. Não aceitaram a ordem de matar seu próprio povo.
É claro que neste caso, os patriotas e militantes das organizações líbias de esquerda devem ser cautelosos em somar suas forças com a oposição. Completamente diferente do que vem acontecendo no Egito e na Tunísia – de longe esta é a que tem o processo mais avançado – na Líbia não temos notícias de organizações revolucionárias e progressistas liderando o processo.
Sabemos dos imensos interesses dos Estados Unidos e da União Europeia, que planejam uma manobra, com apoio da OTAN, inclusive de controle total do território líbio, que é estratégico no Norte da África. Fala-se abertamente na divisão territorial do país em três partes, a qual os verdadeiros patriotas devem se opor. O imperialismo, de forma desesperada, procura retomar o domínio regional em vias de ser perdido.
Como estudioso do OM não sou neutro. Kadafi fez, há pelo menos quatro anos, um descarado acordo com os Estados Unidos, para que seu país fosse retirado da lista “de países bandidos”, que financiam e apoiam o terrorismo. De fato, ele saiu da lista. Pagou um preço por isso. Teve que assumir que seu país e ele apoiaram a derrubada do jumbo 747 da Lokheed que matou mais de 400 ingleses. Ele indenizou pessoalmente cada uma das famílias. Encerrou uma disputa internacional que vinha desde 1988 (seguem nessa “lista” feita pelo Pentágono a Síria, o Irã e a República Popular e Democrática da Coreia). Mas, apesar de todas as críticas que temos ao ditador líbio, temos que ter cautela para ver as forças e os interesses que estão em jogo. Não sabemos ainda quem comanda a oposição líbia ainda.
A oposição ao ditador líbio esta convocando para o dia 25 de fevereiro, uma sexta-feira, dia sagrado para os muçulmanos, uma manifestação de um milhão de líbios para a capital do país, Trípoli. Não sabemos os rumos que as coisas podem tomar ainda. Kadafi fala em morrer como mártir em seu país. Pessoalmente, duvido que isso vá ocorrer. Mubarak se encontra protegido no luxuoso balneário de Sharm El Sheik. O ditador Ben Ali, da Tunísia, vive com certo conforto na Arábia Saudita (até que a revolução árabe bata às portas da Casa de Saud, que ocorrerá em breve).
Pessoalmente, fico na expectativa de que as forças progressistas e patrióticas, de esquerda que atuam na Líbia, resistam e não permitam nem a fragmentação de sua pátria, nem o controle de seu país pelas forças do imperialismo norte-americano e do sionismo internacional. Vamos conferir para ver.
Tunísia – Sem dúvida o mais vigoroso e progressista de todos os movimentos nos países árabes. Como é um país pequeno, tem pouco ou quase nenhum destaque na mídia. Para efeitos de registro, foi lançado um Manifesto intitulado “Frente 14 de Janeiro”, em alusão á data que o ditador foi derrubado. São 14 pontos de um programa muito avançado para aquele mundo. É nos chama a atenção que ele vem assinado pelas seguintes organizações políticas: a) Lia de Esquerda Trabalhista; b) Movimento Sindical Nasseriano; c) Movimento dos Patriotas Democráticos; d) Patriotas Democráticos (Al Watad); e) Corrente Baatista; f) Esquerda Independente; g) Partido Comunista dos Operários da Tunísia e h) Partido do Trabalho Patriótico e Democrático (registro que estes dois últimos mantém relações partidárias com os comunistas do PCdoB).
Breves conclusões
Como sempre faço, apresento agora algumas conclusões:
* Sociólogo, Professor, Escritor e Arabista. Membro da Academia de Altos Estudos Ibero-Árabe de Lisboa e da International Sociological Association e colunista da Revista Sociologia da Editora Escala.