Uma possível análise marxista sobre o governo dos Talibãs

Prof.Lejeune Mirhan - 07-09-2021 1858 Visualizações

Neste meu novo ensaio sobre a temática internacional, sigo ainda no tema Afeganistão. Neste trabalho procuro desenvolver uma análise marxista sobre o que lá ocorreu. Procuro definir algumas coisas, fatos e fenômenos, bem como esclarecer sobre termos e palavras usadas pela mídia que tem o claro intuito de confundir. E isso penetra nas consciências até mesmo de parte da nossa esquerda.

A análise que pretendo fazer neste meu novo trabalho, envolve alguns esclarecimentos preliminares, definições de conceitos e ao final traçar rumos e perspectivas. Tenho realizado muitas leituras diárias, estudado a situação nova criada no Afeganistão, após a Revolução dos Talibãs. Também por meio de bons vídeos no YouTube, em pequenos canais que transmitem em vários idiomas. E essa assistência tem sido com caderno de anotações, parando o vídeo quando necessário. O YouTube, com seus pequenos vídeos e despachos na forma de recortes dos grandes canais, que tem estado ao nosso lado na luta por um mundo multipolar e justo.

Esclarecimentos iniciais

Apenas para registro, como já disse várias vezes, tanto em artigos publicados quanto nas minhas dezenas de entrevistas aos canais de streaming que concedo semanalmente (até a data que escrevo este novo ensaio calculo que foram cerca de 30 sobre a temática do Afeganistão).

Parto do princípio de que os que me assistem e acompanham meu trabalho já sabem que: 1. O Talibã não é e nem nunca foi um grupo terrorista. Os terroristas são a Al-Qaeda e o Estado Islâmico; 2. Os Talibãs não foram fundados pela CIA. A Al-Qaeda, surgida em 1988, teve ajuda dessa agência de espionagem (1); 3) Os talibãs não são plantadores de papoula (planta que se faz ópio e heroína). Eles proibiram o plantio em 2000, quando ainda estava no poder.

Agora vamos às questões relacionadas com a linguagem. Em primeiro lugar, não podemos dizer que os Estados Unidos “saíram” do Afeganistão. Eles foram expulsos do país. Então, não é uma questão simples de palavra. A mídia usa termos como “saíram”, “deixaram” e ela está sendo complacente com o imperialismo, que acabou de levar a maior surra da sua história, pelo menos desde 1975. Eles fugiram do Afeganistão, foram escorraçados de lá por uma guerrilha pobre, camponesa.

É por isso que temos que prestar atenção. Os Estados Unidos, ao serem expulsos de Cabul, na segunda-feira, dia 30 de agosto, dizem que tiraram de lá 120 mil pessoas. Já há algum tempo, eles bloquearam nos Bancos dos Estados Unidos, 10 bilhões de dólares (2), que é metade do PIB afegão, que é um país pobre, com um PIB de 20 bilhões e a metade está bloqueada pela nação mais rica do mundo.

Como diz Noam Chomsky, eles gastaram 2,3 trilhões de dólares, que representam cinco anos de PIB do Brasil (3). Esse dinheiro sequer saiu dos Estados Unidos para o Afeganistão. Esse dinheiro ficou lá mesmo, o gasto militar, a folha de pagamento, tudo saía desse dinheiro. Mas, a maior parte desse dinheiro foi para o chamado complexo industrial-militar, aquele que vende as armas, as mesmas que eles deixaram no Afeganistão, porque não tiveram tempo de pegar.

Chomsky afirma, com base no orçamento de 2019, os EUA gastaram, pela média, um milhão de dólares para cada soldado que mantiveram esses anos todos no Afeganistão. No mesmo ano, segundo ele, os EUA investiram ínfimos US$20.00 para cada criança de seu país!

O segundo esclarecimento que eu faço, é sobre o atentado na capital Cabul, no aeroporto, que resultou na morte de mais de 200 pessoas, das quais, 13 estadunidenses, às quais Biden prometeu vingança e acabou cometendo mais um crime. Exatamente, no dia de sua saída, a partir de um drone, ele bombardeou uma casa onde, supostamente, estava um dos participantes desse atentado no aeroporto. Como é que eles sabiam isso se não tinham mais ninguém em Cabul? Os soldados estadunidenses estavam todos no aeroporto, dormindo em barracas armadas nos gramados. A mamata havia acabado. E, nessa casa, morreram 10 pessoas da mesma família, inclusive crianças. Então, é mais um crime (4).

A mídia, de um modo geral, tratou do atentado no aeroporto como sendo praticado por terroristas. Mas, de meu ponto de vista, esse atentado não foi feito contra as forças imperialistas que ocupavam o aeroporto. Esse foi um atentado contra a guerrilha Talibã, para deixar um clima de insegurança e instabilidade nas fileiras e nas hostes de um grupo que sequer consolidou-se no poder e ainda nem anunciou a formação do seu governo.

Este atentado foi feito pelos terroristas do Estado Islâmico, mantido e sustentado pela Arábia Saudita, especialmente, mas que tem apoio dos Estados Unidos. Este grupo é vinculado à Al-Qaeda que é também terrorista e o Talibã nada tem a ver com isso. A formação de ISIS-Korasan teve todo apoio dos Estados Unidos, incluindo o transporte de terroristas do Iraque e Síria para o Afeganistão (5).

Eles são, como venho afirmando, um grupo de resistência guerrilheira. Esses terroristas estão perdendo espaço no Afeganistão, mas não estão derrotados, não desapareceram. A CNN internacional já entrevistou o líder deles dizendo que têm de 600 a 700 pessoas e que vão voltar para combater o Talibã. Então, para ficar claro, quem fez o ataque terrorista não foram os guerreiros do Talibã.

Nós temos que, não apenas usar o termo certo, mas também entender o conteúdo do que nós estamos falando. Não devemos nunca usar os temos como “insurgentes”, “rebeldes” ou “combatentes”. Não! Temos que chamá-los pelo que, de fato, eles são: guerrilheiros que lutam contra o imperialismo, pela independência nacional do seu país. Portanto, é uma guerrilha camponesa independentista, nacionalista e anti-imperialista.

Mas, não é uma guerrilha do nosso campo, não sendo nem comunista ou socialista. Nesse aspecto, a história está cheia de exemplos de revoluções, lideradas por guerrilheiros em várias partes do mundo, na qual eles não são comunistas e nem de esquerda.

Os maiores exemplos são de Augusto César Sandino, na Nicarágua, Farabundo Martí, em El Salvador, Fidel Castro, em 1959, em Cuba e a luta independentista na Irlanda, levada adiante pelos guerrilheiros do IRA (Irish Republic Army) (6). Nenhuma dessas pessoas ou grupos eram comunistas. Fidel tornou-se alguns anos depois, em 1965 quando participou da fundação do Partido Comunista de Cuba.

Quando foi feita a revolução nicaraguense, em julho de 1979, Daniel Ortega Saavedra, líder guerrilheiro, também não era comunista. Ele, aliás, governa atualmente agora depois de todo esse tempo, mas mais maduro, mais seguro, mais experiente e, deve ser eleito nas eleições em novembro. Ele nunca se proclamou comunista. E todos nós à época apoiamos a Revolução.

O que aconteceu no Afeganistão afinal de contas?

De minha parte, não tenho a menor dúvida, que lá ocorreu uma revolução popular. Então, não devemos usar o termo “rebelião”, “rebeldes”, “insurreição”. Insurreição não tem nada a ver com aquilo que lá ocorreu. Isso ocorreu no Irã, em 10 de fevereiro de 1979, quando o povo inteiro se levantou, tomou Teerã e o Xá caiu. Aliás, já tinha fugido, sem darem quase nenhum tiro.

No Afeganistão, de fato, eles não precisaram dar tiros. Mas, eles estão combatendo há 20 anos, resistindo ao maior exército do planeta, que jamais se viu na história militar do mundo, tamanho é o poder de força. Nem Aníbal, o grande general cartaginense com a sua tropa de milhares de elefantes, nas famosas Guerras Púnicas, em Cartago, que hoje é Tunis, nem ele tinha um poder igual a esse (7).

Então foi uma revolução popular em defesa da independência e soberania nacional, de caráter anti-imperialista. Mais uma vez eu reforço e espero que aqueles que, em um primeiro momento, atacaram mais o Talibã do que comemoraram a derrota do imperialismo, façam a sua devida autocrítica das barbaridades que falaram contra esta guerrilha camponesa, pobre.

O que aconteceu ali e continua acontecendo, é uma renhida luta de classes. Aquilo que Marx diz no Manifesto Comunista de 1848: a história nada mais é do que a história da luta de classes: patrícios contra plebeus, servos contra senhores, proletários contra burgueses. É disso que Marx fala no Manifesto.

No Afeganistão acontece uma luta de classes. Mas, parte do pessoal de nosso campo, sem nenhuma formação marxista ou, se diz ser marxista, não tendo lido sequer o prefácio de nenhum livro de Marx, se arvora de atacar a guerrilha camponesa, fazendo, na prática, o jogo do imperialismo. Por isso não compreendem o conteúdo do que ali está acontecendo.

E quais são as classes em luta no Afeganistão? Quem não consegue perceber, é porque vê, mas não enxerga, por não ser dialético. De um lado, eu não tenho dúvidas, estão os camponeses e seus aliados urbanos, os trabalhadores em geral, proletários, em particular. Essas são as classes em luta. Foram eles que tomaram o poder.

E, muito provavelmente, fizeram o que nós já fizemos no Brasil no começo do século passado, chamado Bloco Operário Camponês (8). Na Rússia, Lênin também fez isso. É uma aliança do proletariado urbano e trabalhadores das cidades em geral com os camponeses.

Na Rússia, quem dirigiu o processo foi o proletariado. No Afeganistão, quem dirigiu a revolução foi o campesinato, tal qual na China. Mas, o proletariado chinês teve grande participação. Então, se não há quase nenhuma dúvida que do lado de cá está a classe dos oprimidos, dos explorados, que possuem consciência política para lutar contra o imperialismo e a independência nacional, qual é a outra classe?

A outra classe, sem dúvida alguma, é a burguesia afegã. Muitos não viram direito, porque o país estava ocupado. Mas, estava ocupado com a anuência e concordância de qual classe? Da burguesia nacional, traidora do povo, que se aliou com o imperialismo e traiu o povo, como na maioria dos países isso acontece – claro, há exceções como Augusto César Sandino e Farabundo Marti, que não eram de origem proletária, mas colocaram suas vidas a serviço da revolução patriótica, democrática, nacional e anti-imperialista. Então, uma luta de classes dos camponeses e seus aliados, versus a burguesia afegã e o imperialismo; e perderam.

Eles vão formar o governo nos próximos dias e já anunciaram uma espécie de Conselho de 12 pessoas. Não sei o critério que eles adotaram, não sei se alguma mulher o integra. Essas pessoas foram nomeadas pelos Talibãs. Eles tentam construir um consenso na sociedade islâmica, por isso a nomeação desse Conselho, que precisa ser amplo. Os seus membros teriam grande influência no governo.

Alguns analistas internacionais comparam este Conselho de 12 membros, com o chamado Conselho de Especialistas no Irã, com 88 membros. Eles são eleitos pelo voto direto e são eles que determinam tudo o que diz respeito ao aspecto religioso do país. O Irã vive em uma Teocracia, e nem por isso deixa de ser uma democracia, uma teocracia democrática (9).

Vamos conviver com nomes que deverão ficar familiarizados, de ora em diante. O principal deles é Abdul Ghani Baradar, líder e cofundador do Talibã em 1994, deve ser nomeado presidente. Haibatullah Akhunzada (10), deve ser uma espécie de líder supremo. A sua pequena biografia já está disponível nas redes e anteriormente citada, ele já é dado como o Emir do Afeganistão desde 15 de agosto. Outros três nomes devem integrar o Conselho, entre eles Mohammad Yaqood, Khalil Haqqani e Mohammad Abbas Stanekzai.

Shura, em árabe significa “Consulta”. É um dos quatro pilares de estruturação de uma sociedade islâmica, determinada a partir de interpretações do Alcorão. Os outros três pilares são: Justiça, Igualdade e Dignidade Humana. Assim, esses 12 membros do Conselho da Shura devem ter grande papel nos rumos do novo governo afegão que deve contar com 25 ministérios (11).

Como o Irã é sempre uma inspiração e até modelo/exemplo para revoluções islâmicas que pretendam instalar governos islâmicos, é preciso entender que na República Islâmica do Irã eles têm duas estruturas. Uma seria a estrutura religiosa, tem como chefe o Aiatolá Ali Khamenei, que é eleito pelo Conselho de Especialistas, a Shura do Irã (por onde se consulta sobre temas do país).

O Aiatolá é o líder espiritual. Seus poderes são parecidos com o de um presidente. Ele cuida das forças armadas e da política externa do país (parecido com o modelo francês). O presidente de direito do Irã atua como se fosse um primeiro-ministro, administrando a parte civil do país, cuidando das coisas de governo e do dia a dia do país.

Existem duas formas de justiça no país: a justiça civil e Xaria, a islâmica. A pessoa pode optar por onde quer fazer correr seu processo. Por exemplo, se uma pessoa quiser se divorciar da sua esposa, ela pode optar por uma ou outra justiça. São, inclusive, leis completamente diferentes. A Xaria é uma espécie de consolidação de toda a legislação islâmica desde a vida do profeta Mohammad no século VII. É o direito islâmico, como o direito romano-germânico, common law e o direito canônico (12).

Eu não sei como será no Afeganistão. Eles falam na criação do Emirado Islâmico, que já existiu no século 19 e terminou em 1926. Mais ou menos quando na Europa fez o Tratado de Versalhes, de 1919. Aquele Emirado do século 19 deu três surras no imperialismo inglês (13). Há uma definição de que o Afeganistão é o “cemitério de impérios”.

Começando pelo macedônio, de Alexandre o Grande, que morreu com 32 anos e seu único filho teria nascido no Afeganistão. Entraram no Afeganistão que não tinha esse nome da época e Alexandre disse: “entrar é fácil, sair dali é que é difícil”. Depois a Inglaterra tentou por duas vezes a ocupação e apanhou em ambas. Posteriormente veio a União Soviética, que perdeu também. E, agora, o imperialismo estadunidense. Não por acaso o Afeganistão é conhecido como “Cemitério de Impérios” (14).

É provável que no mencionado Conselho de 12 pessoas (Shura), eles coloquem Hamid Karzai, o primeiro “presidente” indicado pelos EUA. O aeroporto internacional de Cabul leva o seu nome. É estranho, porque monumentos e prédios públicos só podem ter nomes de pessoas mortas.

O que acontece é que parece que ele está em contradições com o império, diferente do último presidente Ashraf Ghani, que fugiu com 170 milhões de Dólares. Karzai tem um canal com os Talibãs, que querem fazer um governo amplo e podem colocá-lo entre estes 12 membros do Conselho. Isso é muito positivo pelo fato que amplia o leque de forças nesse órgão e é preciso registrar que Karzai tem um canal direto com os EUA.

Também em termos de “definindo as coisas”, eu quero dizer que eles entram agora em um novo período em que o Talibã já assumiu o comando do aeroporto. E, ao assumir o comando no país inteiro – faltando apenas um pedaço, que é a província chamada Panjshir, da qual falarei mais à frente.

Eles iniciaram uma política de relações internacionais, a mais ampla possível. Eles querem manter relações diplomáticas com todos os países que assim o desejarem. Eles disseram claramente no seu programa de governo e carta de princípios: “a guerra acabou”, The war is over. Há até uma música de John Lennon com esse tema (15).

“Essa guerra acabou. Nós não queremos mais brigar com ninguém”, disseram os Talibãs em um dos seus primeiros comunicados à imprensa. “E só a fizemos, porque não nos deixaram alternativas. Vieram aqui em nosso país e nos agrediram, violaram nossas mulheres e ocuparam militarmente o nosso país, na mais longa ocupação da história moderna.

Nós não guardamos rancor de ninguém e não faremos nenhuma perseguição e o perdão é generalizado. Decretaremos uma anistia ampla geral e irrestrita”. Esse é um dos principais pontos do seu plano de governo.

Os Talibãs defendem agora o desenvolvimento nacional para melhoria da vida do povo. Esse é uma das questões mais importantes, relacionadas à reconstrução nacional que a China está se colocando como a protagonista, entre outros países.

Eles pediram para que todos os países que mantenham funcionando as suas embaixadas em Cabul, para que não sejam fechadas, pois elas estão protegidas. É provável que, depois que anunciarem seu governo, eles venham a ser reconhecidos nos próximos dias por muitos países.

Nesse momento, o Afeganistão vive o clássico vazio de poder ou vácuo de poder. Ele viveu uma situação como essa depois que a União Soviética deixou o país, em 1989. Tinha um governo fraco, provisório que se sustentou até 1992, mas a guerra civil do Talibã contra a Al-Qaeda, forças governistas e outros agrupamentos, acabaram por tomar o poder em 1996.

O primeiro país que reconhecerá o novo governo deverá ser a República Popular da China; depois, provavelmente será a República Islâmica do Irã; em terceiro lugar deverá ser a Federação Russa, que ainda está receosa, pois não retirou o grupo Talibã da sua lista de grupos terroristas.

De todos os canais internacionais que acompanho, os canais ligados à Rússia são os únicos que ainda se referem aos talibãs como terroristas. Essa é uma grande contradição que Vladimir Putin terá que enfrentar nos próximos dias. Mas, creio que irão reconhecer (16).

Depois disso o grupo Talibã – não o governo afegão – provavelmente vai se transformar em partido político. Hoje eles são um grupo guerrilheiro de resistência, mas devem vir a ter o seu partido político e provavelmente – espero que isso aconteça – todos os partidos serão legalizados e que haverá eleições. Acho que estão no horizonte de médio prazo tudo isto.

Então, muitos países vão reconhecer o novo governo afegão, sendo só uma questão de tempo. Creio que até os Estados Unidos reconhecerão. Mas, isso não será simples. Provavelmente eles apoiarão grupos de resistência ao novo governo, com o intuito de enfraquecer o grupo. Mas, ao que tudo está indicando, isso será a derrota completa.

Perspectivas

Olhando o cenário mundial, as perspectivas para a burguesia internacional são as mais sombrias que se possa imaginar. Eles estão literalmente em pânico com o avanço das lutas dos povos em todo o mundo. Em especial após a vitória do Talibã, no Afeganistão.

Em nosso continente latino-americano, também esperamos avanços ainda maiores. Não temos dúvidas que venceremos no Chile e em breve também no Uruguai, onde a Frente ampla vai voltar ao poder. A onda no mundo é de progresso, de nacionalismo, de independência e de soberania. Como se estivéssemos retornando ao Tratado de Westfália, na cidade de Osnabruque, na Holanda, no mês de janeiro de 1648.

Foi nesse momento que as monarquias absolutas da Europa, assinaram um pacto entre elas de não agressão: “eu respeito a sua fronteira e você respeita a minha; é a não ingerência, a independência nacional”. É dali que sai o conceito do direito internacional de soberania e independência, que hoje está pisoteado.

Agora, a guerrilha afegã nos presta um grande serviço, um grande favor ao mundo. A independência nacional não tem preço. Então, o que aconteceu lá é um exemplo para os povos que lutam no mundo pelos mesmos objetivos. É como o Hamas na Palestina. É como dr. Bashar na Síria, que está no governo, mas é acossado pelos mercenários, e pelos terroristas apoiados pelos Estados Unidos e Arábia Saudita.

Mas, venceu a batalha e os Estados Unidos estão sendo expulsos do Iraque e da Síria, lá ainda estão cerca de dois mil soldados, que serão expulsos. E nós estamos vivendo um momento no mundo de decadência irreversível dos Estados Unidos.

As forças do imperialismo estão retrocedendo, recuando, perdendo e levando surras de todos os lados. E quem diz isso é a própria burguesia internacional. A revista The Economist, em suas edições de 21 e 28 de agosto, que dizia: “Quando será a próxima revolução jihadista global?” O que eles querem dizer com a palavra “jihadista”? Guerrilheiros, lutadores do povo, lutadores de massa, comunistas, socialistas, tudo isso é sinônimo de jihadista. São lutadores de todas as correntes ideológicas.

Então, a mensagem que eles mandam para o mundo inteiro é que o imperialismo estadunidense não é invencível. Acabou de ser derrotado e escorraçado em um país que ocupou e fez o povo sofrer por 20 anos.  Assassinou 60 mil guerrilheiros. Portanto, o recado claro foi este: o imperialismo não é invencível.

Mas, tem um segundo recado embutido: a luta traz vitórias, a luta de massas. A luta compensa. Mas, qualquer luta de massa? Não, a luta armada. Aí está o pânico da burguesia. Eles (Talibãs) venceram com armas na mão.

Não por acaso o primeiro grupo guerrilheiro que aplaudiu enfaticamente a vitória Talibã – menos uma parte do nosso campo aqui do Brasil, a identitária, que criticou o Talibã – foi o Hamas na Palestina, cujo nome é uma sigla em árabe que significa: Movimento de Resistência Islâmica Palestino. E eles são de grupos diferentes, dentro da articulação internacional do Islã.

Por incrível que pareça, só pessoas que estudaram as leis da dialética, que fazem as suas análises com base no método dialético, onde tudo se transforma e tudo se relaciona, sabe que a vitória dos guerrilheiros camponeses do Afeganistão, beneficia nós do Brasil, de oposição a esse fascista, bem como beneficia os povos em luta em todo o mundo. E, por incrível que pareça, aquela vitória ajuda a luta de emancipação das mulheres no mundo inteiro, ao contrário dos que acham que eles vão massacrar as mulheres.

Eu acabei de ver uma entrevista em um hospital em Cabul, com duas médicas que usavam o véu. Não estavam de burca, que não vai ser imposta. As duas falaram naquela linha de que as mulheres afegãs sabem se defender. Elas não precisam ser “salvas” pelas feministas ocidentais.

Era um recado claro para as feministas do mundo inteiro: “nós sabemos nos defender e nós precisamos de apoio político, não precisamos de comiseração; nós somos lutadoras, nós pegamos em armas para derrotar o imperialismo”. Então, essa vitória dos guerrilheiros Talibãs é também a nossa vitória. É a vitória do nosso campo e a derrota do imperialismo; de todos os tipos de imperialismo.

Um despacho do Russia Today, em espanhol, que tem uma linha melhor do que a versão em português, que se chama Sputnik, dizendo que a União Europeia vai ter uma atuação mais independente dos Estados Unidos, porque eles entraram em uma aventura à serviço dos EUA. A Inglaterra, a Alemanha, a França, a Austrália e mais de 20 países perderam muito, junto com os Estados Unidos. Sem falar que muitos deles sentiram que os Estados Unidos os abandonaram no campo de batalha e só retiraram os seus e os outros de todos os países foram abandonados.

Esta derrota do imperialismo ajuda a consolidar aquilo que nós estamos dizendo, que está em processo de consolidação, que é o mundo multipolar. Eu fazia análises que o mundo vive uma transição entre a unipolaridade de 1991 e a multipolaridade. E dizia que nem a unipolaridade acabou, nem a multipolaridade se consolidou no mundo. As coisas mudaram completamente. A multipolaridade é uma realidade e está em processo de consolidação. Rússia e China são as grandes potências que conseguem parar o imperialismo. Se uma guerrilha camponesa consegue, a Rússia e a China não?

Finalizo este ensaio dizendo que o presidente Joe Biden tem sofrido uma oposição violenta, de forma que é fato que ele está desmoralizado. Estão dizendo que foi um erro a saída destrambelhada, não planejada. Nada disso. Eles simplesmente foram expulsos. Você não pode planejar a saída quando você está sendo expulso, enxotado, enxovalhado e escorraçado.

Tudo isso está certo, mas é preciso dizer o seguinte: ele está no governo há apenas oito meses. Esta é uma guerra de 20 anos, uma guerra contra o povo afegão. A gente fala guerra e parece que estão lutando um contra o outro, sendo dois atores com o mesmo potencial. Não! É guerra de agressão. Eles falaram Guerra do Golfo, a Primeira Guerra no Golfo, a Segunda Guerra do Golfo, contra o Iraque. Não é uma guerra, é uma agressão dos Estados Unidos contra a República Árabe do Iraque. E, o Biden sofre nesse momento um ataque vindo da extrema-direita fascista, que perdeu a eleição encabeçada pelo Donald Trump.

Não se trata de defender o Biden? Não! Somos todos anti-imperialista. Interessa a quem a derrubada do Biden hoje? Quem assumiria o seu lugar seria a Kamala Harris, muito mais conservadora que Biden. Ela é punitivista. Quando foi procuradora-geral da Califórnia, foi o período quando mais se prenderam negros, por qualquer coisa, como porte de pequenas quantidades de maconha, drogas. Todos eram imediatamente presos, encarcerados. Ela é do tipo ideológico da Hillary Clinton. Se esta ganhasse as eleições em 2016, a Síria seria bombardeada oficialmente pelos Estados Unidos. Lá eles usam a “mão do gato”, eles financiam os terroristas, jihadistas, que fazem o serviço por eles.

Os que querem derrubar o Biden, os que fazem oposição sem quartel hoje, são os que fizeram a guerra em 20 anos e, pior ainda, são aqueles que queriam continuar a ocupação e que não queriam que as tropas fossem retiradas.

Não é o problema de retirar devagarinho ou de forma planejada. Não tinha que mandar soldados, que chegaram a 150 mil e no final estavam com apenas oito mil. Essa gente é que faz uma oposição encarniçada ao presidente dos Estados Unidos.

Biden cumpre direitinho o seu papel de chefe de um Império. Ele até pode ser um bom presidente para o povo dos Estados Unidos e é bom que seja. Não devemos desejar mal para o povo estadunidense. Mas, ele é chefe do império e tem que cumprir o seu papel.

Todos sabem que na guerra ao Afeganistão foram gastos 2,3 trilhões de dólares, em quase 20 anos. Mas, quase nada chegou ao país. Tudo ficou nos Estados Unidos. Mas para quem? Para a Boeing, Mcdonald Douglas, essas empresas do Complexo Industrial militar dos Estados Unidos. E, como diz o Julian Assange, uma parte foi para lavagem de dinheiro, que a burguesia estadunidense precisa fazer para não declarar no Imposto de Renda. Então, é esta a situação (17).

O último registro que faço neste trabalho é sobre os números sobre o armamento dos Estados Unidos. Acreditam que eles deixaram para o Talibã mais de 550 mil armas (entre rifles, pistolas e metralhadoras), mais 72 mil veículos militares blindados e quase 200 aeronaves de diversos tipos (18). Agora, não se iludam, o que eles puderam destruir, destruíram, pelo menos os que estão lá no aeroporto.

Fala-se que hoje o Talibã tem uma força militar maior do que 100 países do mundo. Nem que os Estados Unidos quisessem, eles conseguiriam levar tudo. Eles saíram fugidos. Donald Trump é mais radical, ele não fala fuga, ele fala rendição e não deixa de ter uma certa razão.

Uma reportagem de uma rede internacional de notícia da conta que as aeronaves que estão no aeroporto Internacional de Cabul, foram praticamente todas depredadas. As que os EUA não puderam quebrar ou depredar por inteiro, eles retiraram aqueles aparelhos no painel, chamados aviônicos, sem isto, os aviões não podem decolar.

Só tem dois países que fabricam esses equipamentos: Israel e Estados Unidos e todos eles são absolutamente controlados. Não se compra peças de reposição, sem que eles fiquem sabendo. Não tem mercado paralelo de aviônicos. A reportagem mostra imagens de alguns helicópteros, alguns aviões, absolutamente impossibilitados de alçar voo. Agora, isso é apenas uma parte dos equipamentos deixados. Tem muito mais espalhados pelo Afeganistão inteiro (19).

De nossa parte, seguiremos acompanhando de perto o processo de conquista do poder pela guerrilha afegã. Esperava-se que já na sexta, dia 3 de setembro, a composição do ministério pudesse ser anunciada oficialmente. Mas, divergências internas entre as várias correntes islâmicas que compõe o Talibã impediram que isso se concretizasse (20)

Deixo para vocês uma mensagem de esperança, de luta e de paz. É uma paz, como disse Maquiavel em seu famoso livro O Príncipe, “Defenda a paz, mas prepare-se para a guerra”. Então, nós somos pela paz, mas nós temos que estar preparados para a guerra. Há outra citação dele maravilhosa: “Há tempos de uso da a pena, mas há tempos de uso da espada”. Para a guerrilha afegã os tempos são de uso da espada. Nós aqui no nosso Brasil varonil, vivemos tempos de uso da pena. Ainda.

Notas

1) O que se mais fala, na maioria das fontes históricas é que a CIA financiou, armou e treinou mais de 90 mil mujahedins, entre eles muitos que posteriormente virariam Talibãs e membros da Al-Qaeda. Mas, como o texto afirma, o Talibã é de 1994, quando a URSS já havia deixado o Afeganistão em 1989. Mais informações visite este link <https://bit.ly/3yHDJv7>;

2) Um dos últimos crimes cometidos pelos EUA contra os afegãos foi o bloqueio de suas reservas. Veja mais neste link <https://bit.ly/3tplWrO>;

3) Veja neste link <https://bit.ly/3DPptEx> a entrevista completa de Noam Chomsky de mais de uma hora;

4) Usando o pretexto de se vingar pelo atentado sofrido, os EUA bombardeiam uma casa e matam quase toda a família. Veja mais detalhes neste endereço: <https://glo.bo/3BMiV7Y>;

5) Veja essa informação no site chamado Moon of Alabama <https://bit.ly/3thwYPN>;

6) Para saber mais sobre o conflito na Irlanda, acesse este link: <https://bit.ly/3zNTl1G>;

7) Sobre as guerras púnicas de Cartago contra Roma, veja mais informações neste link: <https://bit.ly/3zNTl1G>;

8) A experiência de formação de um Bloco Operário e Camponês no Brasil pode ser lida neste link: <https://bit.ly/3zNTl1G>;

9) Ainda que não tenha sido nomeado, algumas informações sobre esse tema podem ser lidas nesta reportagem: <https://bit.ly/3DN9abf>;

10) Veja neste link: <https://bit.ly/3E0rtdg> mais informações sobre o novo líder absoluto do Talibã;

11) Veja aqui neste endereço <https://bit.ly/3yKUiXi> o significado da Shura um dos pilares do Islã;

12) Vejam neste link <https://bit.ly/3yT2fK8> maiores informações sobre a Xaria, conjunto de leis islâmicas;

13) Vejam neste endereço <https://bit.ly/3BBASG6> todas as guerras que os afegãos venceram contra a Inglaterra;

14) Muitos autores dizem que o Afeganistão é um cemitério de impérios. Veja nesta matéria <https://glo.bo/3BIhuXY>;

15) Veja neste link do YouTube a linda música de John Lennon sobre o Natal, Mary Christmas <https://bit.ly/3jJPgWI>;

16) Minhas sugestões de bons canais progressistas e patrióticos, todos eles em espanhol: <https://bit.ly/3yOBxlB>, a HispanTV do Irã; <https://bit.ly/3twcPFT>, CGTN DA China; <https://bit.ly/3yP8a2s>, RT da Rússia e <https://bit.ly/3jJ8A6l>, Telesur da Venezuela;

17) Julien Assange, já em 2011, denunciou que todo o dinheiro gasto no Afeganistão era lavagem de dinheiro. Veja neste link <https://bit.ly/3zQBmYf>, uma matéria que à época viralizou;

18) Veja nesta matéria <https://glo.bo/3DQuI6K> a quantidade de armamentos abandonados pelos EUA no Afeganistão;

19) Veja aqui neste link <https://glo.bo/38IFwp8>, como os EUA destruíram as aeronaves que não puderam levar com eles;

20) Veja neste link <https://bit.ly/2WSFqJ1> excelente artigo do jornalista brasileiro Pepe Escobar do Asia Times.

* Sociólogo, professor universitário (aposentado) de Sociologia e Ciência Política, escritor e autor de 17 livros (duas reedições ampliadas), é também pesquisador e ensaísta. Atualmente exerce a função de analista internacional, sendo comentarista da TV dos Trabalhadores, da TV 247, da TV DCM entre outros canais, todos por streaming no YouTube. Publica artigos e ensaios nos portais Vermelho, Grabois, Brasil 247, DCM, Outro lado da notícia, Vozes Livres, Oriente Mídia, Dossiê Sul, e Vai Ali. Todos os livros do Professor Lejeune podem ser adquiridos na Editora Apparte (www.apparteditora.com.br). Leia os artigos do Prof. Lejeune em seu site www.lejeune.com.br. E-mail: lejeunemgxc@uol.com.br e Zap é +5519981693145. Youtube: https://www.youtube.com/c/CanaldaGeopolítica; Facebook: https://www.facebook.com/ApparteLivrariaEditora; Facebook: https://www.facebook.com/professorlejeunemirhan/?ref=pages_you_manage; Twitter: https://twitter.com/lejeunemirhan?s=11; Instagram: https://instagram.com/lejeunemirhan?utm_medium=copy_link.