O Oriente Médio como um todo, segue em ebulição. A chamada grande imprensa ainda mantém seus correspondentes na região e a bola da vez agora é a Líbia já com 23 dias de protestos diários e parte do país controlada pelos rebeldes. Com a exceção da honrada Síria, cujo governo tem conduta firme contra o imperialismo norte-americano, as manifestações não poupam nenhum país árabe, como veremos neste novo artigo.
Os destinos da revolução
Na próxima semana, comentaremos com maior vagar o que vem ocorrendo na Líbia em particular. Reunimos neste momento farta documentação sobre o processo histórico que lá vem se dando, desde o início da revolução liderada pelo coronel Muammar Kadafi em 1969, na esteira do nacionalismo árabe, até os dias atuais.
Quero me deter em um panorama geral da situação no mundo árabe. Não por acaso os analistas e correspondentes internacionais vem dizendo que as coisas vão mudar profundamente de figura quando as manifestações e a revolução atingir a Casa de Saud, da monarquia saudita que governa esse país que tem o nome da família, há mais de 200 anos. Todos os quase dois mil príncipes dessa monarquia absolutista, reacionária e pró-americana, devem dormir todos os dias em verdadeiro pânico.
Quero aqui comentar e reforçar a minha convicção de que esta em curso uma revolução no mundo árabe. Um processo revolucionário, ainda que não concluído. O caráter, o conteúdo desse processo revolucionário em curso ainda está em disputa. Disputa essa que se trava com ninguém menos que a maior potência econômica e militar do planeta, que são os Estados Unidos. As máquinas militar, diplomática, política e econômica dessa nação estão todas em movimento para fazer com que esse processo revolucionário não rompa as relações com os EUA, que poupe Israel e que o status quo na região seja integralmente mantido. Ou dito de outra forma, que os interesses estratégicos estadunidenses e israelenses sejam todos preservados, ainda que alguns dos aliados históricos dessa potência imperial possam e devam ser sacrificados (como estão sendo, um a um).
Como diz Carlos Fonseca Terán, secretário adjunto de Relações Internacionais da FSLN, da Nicarágua, que as esquerdas tradicionais demoraram a entender que o que ocorria na Venezuela e na Bolívia eram processos revolucionários. Essa mesma esquerda demorou a saudar tais revoluções. Nós não podemos cometer o mesmo erro com relação à revolução árabe. Sei que o processo pode ser truncado em breve, a qualquer momento poderemos presenciar inclusive alguns retrocessos, mas, no geral, em perspectiva, há um claro processo revolucionário em curso, com mudanças substanciais com relação a uma situação anterior que se vivia.
Insisto em dizer: não devemos nos iludir sobre quem é o inimigo maior com quem nossas baterias devem se voltar. É o império norte-americano, neste momento chefiado por Barak Obama, que cumpre direitinho e à risca as determinações desse império, cuja ação serve aos trustes internacionais e ao capital estadunidense.
Obama sabe do efeito dominó. Ali naquela região poderá não ficar nada em pé em termos dos governos ditatoriais e monarquias absolutistas, todas, sem exceção, amigas de Washington. Pessoalmente, em médio prazo, vislumbro que venham a ser trocados todos ou praticamente todos os governos dos 22 países árabes. Ou sofrerão mudanças profundas. Onde eram ditaduras, devem florescer democracias árabes, ainda que jovens e com problemas, mas, enfim, democracias. Onde eram monarquias absolutistas, poderão vir a ser transformadas em constitucionais, nos moldes da inglesa e espanhola ou mesmo transformadas em repúblicas.
Como tenho afirmado neste espaço, estou convencido que quaisquer que venham a ser os governos que emergirão tanto do Egito como na Tunísia em alguns meses ou em todos os países que hoje presenciam manifestações gigantes de rua, tais governos, sejam moderados ou revolucionários, nunca mais serão os mesmos e nunca mais poderão agir como agiam seus predecessores. Ou seja, perdem profundamente os Estados Unidos e Israel. Vislumbro o surgimento de um novo Oriente Médio, mais progressista, mais democrático, mais popular e quiçá mais revolucionário e até socialista.
Aqui vale registrar que vários autores que tenho lido, têm feito comparações dessa revolução árabe com a revolução de 1848, ocorrida em várias localidades da Europa. Como registra Antônio Luiz Costa (Carta Capital de 9 de março de 2011, página 41), as semelhanças mais marcantes são o forte entusiasmo que as massas vêm demonstrando por autonomia e autodeterminação de seus povos, certa liderança mais difusa (nunca muito visível), também objetivos não muito claros em termos estratégicos e uma ansiedade geral das diversas tendências ideológicas de interpretar e mesmo cooptar tais movimentos. De fato, são fortes semelhanças.
Nunca devemos esquecer que nesse revolucionário ano de 1848, no dia 21 de fevereiro, saiu nas livrarias londrinas um Manifesto que procurava tornar claro a opinião dos comunistas sobre aquele momento político que vivia a Europa. Escrito por dois jovens comunistas que sequer haviam completado 30 anos, Marx e Engels, tal documento veio a influenciar profundamente a vida da humanidade até os dias atuais. Não vejo perspectivas de que naquela região toda, com esse grau atual de ebulição social, de ruptura com velhos e carcomidos modelos, possamos presenciar transições completamente controladas e consentidas. Imagino mudanças reais e profundas em toda a região.
Análise e observações gerais do processo
A economia – Uma das explicações das insatisfações das massas árabes está, seguramente, na política econômica adotada nos últimos trinta anos em toda a região do OM. Praticamente sem nenhuma exceção – ou à exceção de Iraque e Síria – todos os países adotaram o modelo econômico neoliberal. Privatizaram quase tudo, liberalizaram o fluxo de capitais e deixaram o câmbio flutuar livremente. Isso afetou profundamente as economias que, só não foram à bancarrota porque as receitas da conta do petróleo sustentou certo crescimento e desenvolvimento social, ainda que tenha concentrado renda.
Com a revolução em curso, esse modelo sofrerá profundo abalo. Os novos governos que emergirão na região não poderão seguir aplicando a mesma cartilha do FMI, Banco Mundial e outros órgãos à serviço do império norte-americano.
A religião – Em momento algum, desde dezembro na Tunísia, passando por fevereiro no Egito e agora em março na Líbia, o Islã foi alternativa ao processo revolucionário em curso. Ainda assim, a mídia insiste em mostrar um conflito completamente permeado pela religião. Fala-se em controle pelos fundamentalistas, na instituição de estados teocráticos. Mas isso nunca esteve na ordem do dia. Nem os partidos mais profundamente religiosos, como a Irmandade Muçulmana no Egito, nunca pregou a edificação de um estado teocrático nos moldes do Irã, da Arábia Saudita ou de Israel (sim leitor, você não leu errado: Israel é um estado teocrático, judaico e discriminador, sem constituição).
Todas as propostas emanadas de todos os partidos, frentes partidárias, coligações, alianças que têm vindo à tona nunca sequer mencionaram, em momento algum, que a alternativa deveria ser o estado islâmico. Muito ao contrário. O secularismo segue forte no Egito, na Síria e no Iraque, que também sofre abalos com as manifestações de massa. Não se viu cartaz em apoio à Osama Bin Laden em lugar algum, em praça nenhuma do OM.
Mitos que caíram – Uma revolução sempre coloca por terra muitos mitos, muitas mentiras que, contadas ao longo do tempo, eram vistas como verdadeiras. Duas delas, bem recentes, caíram por terra nesse processo ainda em curso no OM árabe. O primeiro deles é de que a Internet teria jogado um papel central. Alguns chegaram a chamar – na ânsia de dar um nome àquela revolução – de Revolução Facebook, pelo simples fato que algumas pessoas criaram comunidades de protestos e convocaram manifestação por essa rede social. Também aqui não se viu cartaz algum em apoio à Mark Zuckerberg.
Aqui os números falam por si só. Apenas 20% da população do Egito possui acesso á rede de Internet por banda larga e no máximo 50% possui celulares. E ainda assim, tanto a rede de banda larga como de telefonia móvel foram completamente desligadas no Egito todo por vários dias antes das grandes manifestações, em uma das atitudes desesperadas tomadas por Mubarak antes de sua renúncia em 11 de fevereiro.
A outra é que a revolução foi espontânea, sem líderes. É bem verdade que poucos foram os nomes mais expressivos e conhecidos que vieram à tona no processo, em especial no Egito. Alguns, inclusive, ex-colaboradores do antigo regime como Mohammed El Baradei e Amr Moussa. Mas, tais nomes tinham mais conhecimento no exterior e nos meios acadêmicos e diplomáticos do que do povo egípcio.
No entanto, o que se presenciou foi uma aliança, ainda que não previamente estabelecida, de todos os setores sociais da sociedade egípcia e tunisiana (e isso vale para todos os outros países árabes que presenciam manifestações de rua), em especial da esquerda, dos patriotas, dos seculares, dos muçulmanos progressistas, dos socialistas e comunistas em geral, que jogaram papel decisivo nesse processo. Foi uma aliança de entidade sindicais proletárias, de sindicalistas profissionais liberais oriundos da classe média – em especial médicos, advogados e engenheiros – entidades de jovens e de estudantes com os diversos partidos políticos e frentes partidárias pré-existentes ou formadas no processo.
O tempo da revolução – Como disse certa vez, quando perguntaram para Chu En Lai em 1970, líder da revolução chinesa, sobre o que ele achava da revolução francesa de 1789 e ele respondeu, para espanto do entrevistador, que ainda era cedo para avaliarmos. Pois da mesma forma é o que ocorre no OM árabe. É muito prematuro fazermos afirmações sobre os rumos do processo, suas consequências. No entanto, como já disse Marx quando analisou o processo revolucionário da Comuna de Paris em 1871 – que este ano comemoramos 140 anos em julho! – que o grande erro dos comunardos teria sido o fato de que eles não marcharam sobre o Palácio de Versalhes. Da mesma forma posso dizer isso. É preciso ficar atento ao processo de ocupação de tomada do poder político pelas forças comprometidas em transformações profundas na região e não em simples transições controladas e consentidas.
Da mesma forma que pode parecer cedo afirmarmos que o nacionalismo árabe, chamado de pan-arabismo, estaria de volta e com força. Mas, os indícios são fortes nesse sentido, tanto pelos discursos das lideranças, como pelas plataformas que têm vindo à público das frentes e alianças partidárias que vêm sendo constituídas. Emanam quase que como consenso em todos os programas e propostas a questão da soberania nacional, a independências dos países, a não ingerência das potências estrangeiras – leia-se EUA e Israel – e a integridade territorial dos países. A questão das amplas liberdades, da democracia, da constituinte, da anistia irrestrita são bandeiras que aparecem em todos os países. Nas monarquias aparece a luta pela instituição de repúblicas democráticas, quiçá populares. Cartazes de Nasser tem sido ostentados amplamente.
Quem ganha e quem perde
Mesmo que ainda seja cedo para fazermos afirmações peremptórias de quem sairá ganhador e perdedor do processo revolucionário em curso, alguns atores e agentes já podem ser identificados. Com base em diversos autores que tenho lido, podemos concluir, preliminarmente, sobre isso.
Os grandes perdedores – Poderíamos listar muitos, mas vamos aos essenciais:
EUA – Não consegui achar um autor, por mais direitista que seja, que tenha concluído que os EUA sejam os grandes vencedores. Foram derrotados na sua tosca e obscura tentativa de “levar” a democracia para o Oriente Médio. De fora para dentro, desde a era Bush em 2001. Como diz Andrew Bacevich, acadêmico da Universidade de Boston “durante anos os EUA forçaram uma porta (a democracia no OM) que só abre para fora. E mais, essa porta só abre por vontade própria; os acontecimentos das últimas semanas demonstraram com clareza que não apenas partes importantes do OM estão prontas para a mudança, mas também que esse impulso de mudança vem de dentro”. Estou plenamente de acordo com essa afirmação. As patéticas coletivas de imprensa dadas por Obama e pela Senhora Clinton, eram cenas cômicas que poderíamos resumir como que se eles estivessem correndo atrás dos acontecimentos que, aliás, nunca conseguiram prever, apesar de terem 27 agências ditas de inteligência e de segurança interna.
Nesse caso, mesmo que se instalem governos moderados, de transição controlada e consentida em toda a região, esses governos nunca poderão ser descaradamente pró-EUA como foram os governos de Mubarak e Ben Ali no Egito e Tunísia.
Israel – Não vejo maior perdedor, depois dos EUA, do que Israel. Também aqui, em todas as leituras feitas, pesquisas acadêmicas, não se encontra autor que diz que esse processo favorece Israel. Ao contrário. A tônica é que vai se instalando em toda a região governos anti-Israel, antissionistas. Não dá para acreditar que o primeiro Ministro de Israel, Benjamin Netanyahú venha conseguindo dormir em paz. Nesse sentido, em médio prazo, a questão palestina tem que voltar ás mesas de negociações.
Al Qaeda – Seu programa fundamentalista prega a revolução islâmica, pela forma violenta, atentados que matam indiscriminadamente – a que toda a esquerda árabe se coloca contrário – e um estado islâmico. Nada disso se verificou no processo em curso. Ninguém defende a violência indiscriminada e um estado teocrático. Sem dúvida, um dos grandes derrotados.
Fundamentalismo – Considero derrotados todos os grupos que pregaram, em algum momento, a constituição de estados teocráticos como saída para a crise na região. Se é certo que cresceu a identidade muçulmana, cresceu também a identidade nacional, de ser árabe. Grupos que sempre defenderam a instalação de repúblicas islâmicas na região perderam espaços na sociedade e seu destino será seguramente o gueto, pois tais propostas não mais encontram eco nas massas árabes, sedentas de democracia.
Neoliberalismo – Perde, como vem perdendo espaço e terreno em todo o mundo capitalista, o modelo de capitalismo financeiro e neoliberal. Ainda que seja cedo para afirmarmos que estão derrotados, no OM árabe sofreram abalo significativo. As economias sofrerão profundas mudanças. Entendo que essa crise geral que vive o OM é parte da crise do modelo capitalista em vigor e da decadência do próprio império norte-americano.
Monarcas e ditadores – Esses são os grandes derrotados localmente falando. Monarcas absolutistas, quase feudais, regados aos petrodólares, são grandes perdedores. Devem ser ou substituídos por monarquias constitucionais ou mesmo seus países verão a queda de seus reinados, seus impérios, seus sultanatos e outras formas autocráticas de governos. Perdem também os ditadores travestidos de “presidentes” em repúblicas farsescas. Esses devem ser substituídos em curto prazo por governos de transição ou em médio prazo por governos constitucionais democráticos eleitos diretamente pelo povo, com novas constituições soberanas, eleitas em regime de ampla liberdade, com anistia aos presos e liberdades políticas e sindicais.
Os que ganham – A advertência anterior vale para os ganhadores. Podemos listar aqui em primeira análise, que coincide com diversos analistas internacionais, os que, preliminarmente, ganham com esse processo revolucionário.
Reformadores e reformistas – Como o processo revolucionário esta ainda em curso, não é certo que teremos mudanças de cunho revolucionário, de troca de classes no poder, de mudança de orientação de modelo econômico, para o socialismo, por exemplo. Isso não está claro ainda. Mas, podemos dizer que profundas reformas ocorrerão em toda a região. As coisas não ficarão mais como se encontram. Ainda que não venham a ser mudanças profundas, elas serão amplamente significativas para a região. Assim, as correntes mais reformistas já podem dizer-se, desde já, vitoriosas nesse processo. E tais mudanças, não serão como falava Lampedusa, no seu clássico romance O Leopardo, quando se dizia “que tudo tem que mudar para que fique como está”.
Nacionalismo árabe – Ainda que não possamos afirmar com certeza que ele voltará a triunfar como da época de Gama Abdel Nasser, presidente do Egito (1954-1970), ele cresceu no processo. Colocou-se de forma aberta e clara para as massas. Seus partidos nacionalistas e seculares, na maioria clandestinos, puderam voltar a expor amplamente suas propostas para as massas árabes. Pode-se dizer igualmente que ganham as propostas chamadas pan-arabistas em geral.
Esquerda árabe – Se em alguns países, como a Palestina e a Síria, os comunistas e socialistas já são respeitados e relativamente fortes, no restante do mundo árabe a esquerda em geral – patriotas, nacionalistas progressistas, socialistas e comunistas – podemos dizer que ela terá uma oportunidade histórica para expor de forma clara suas propostas, seu programa e fazer alianças inteligentes e amplas, que possam valer seus programas de transição rumo a uma sociedade mais justa, o socialismo.
Irã – Difícil não concluir que o Irã foi um dos grandes vencedores no processo. Sai fortalecido. Massas xiitas em vários países o têm como referência, ainda que não defendam em seus países estados islâmicos. Difícil imaginar que haja algum clima para tanto os EUA como Israel de bombardearem esse país, tal como essa proposta esteve nas mesas de conversações na região. Enfrenta uma oposição pró-ocidental no país, mas tem conseguido amplo apoio das massas iranianas ao seu processo revolucionário de feições próprias de características islâmicas, a qual devemos respeitar.
De um modo geral, essas são conclusões que chegamos neste momento histórico que vivemos na região e depois de dois meses de meio de amplas manifestações em todos os países da região, desde que em 15 de dezembro de 2010, o jovem de 26 anos Mohammed Boazizi, vendedor de frutas ambulante, mas com formação universitária, decidiu atear fogo ao seu corpo em frente ao palácio presidencial na cidade de Túnis. Muitas vezes a história tem os seus saltos a partir de episódios menores como esse, mas que surtem imensos efeitos.
Semana que vem abordaremos o processo na Líbia.
* Sociólogo, Professor, Escritor e Arabista. Membro da Academia de Altos Estudos Ibero-Árabe de Lisboa e da International Sociological Association e colunista da Revista Sociologia da Editora Escala. E-mail lejeunemgxc@uol.com.br. Escrito em 10/03/2011.