Conflitos Étnicos

Prof.Lejeune Mirhan - 08-07-2021 756 Visualizações

O autor que mais trata na atualidade dos conflitos étnicos ou mais especificamente do choque entre civilizações é o professor Samuel Philip Hungtintton. Ele é americano e bastante respeitado em seu país e no exterior. É professor de Ciência de Governo e Diretor do Instituto "John M. Olin" de Estudos Estratégicos da Universidade de Harvard. Foi também presidente da Associação Americana de Ciência Política e Coordenador de Planejamento de Segurança da Comissão de Segurança Nacional dos Estados Unidos.

Já em 1968 o autor inova no campo da sociologia, ciência política e administração pública, quando publica Political Order in Changes Societies[1]. Aborda pela primeira vez os conceitos de "governabilidade" e "institucionalização política". Trata do tema atualizadíssimo, ao qual, sistematicamente, presidentes da República tem recorrido, para buscar apoio político[2].

O professor aborda questões relativas à militarização da sociedade. Se for verdade que quando os Partidos políticos são fortes declina a possibilidade de intervenções militares, por outro lado, "a intervenção militar é um sintoma de decadência política, decorrente do desequilíbrio entre mobilização social e institucionalização política... assim, quanto maior a mobilização social e menor a institucionalização política, tanto maior a probabilidade de intervenção militar"[3].

Trata ainda da questão do desenvolvimento. Se for certo que há uma tendência de sociedades menos desenvolvidas de tentarem copiar modelos de consumos das mais avançadas, há também uma tendência governamental de combater as demandas reprimidas e não de procurar atendê-las.

O professor Hungtintton define desenvolvimento político como "a institucionalização de organizações e procedimentos políticos, sendo que institucionalização seria o processo pelo qual organizações e procedimentos ganham aceitação e respeito por parte dos que delas se utilizam"[4].

A hipótese central do professor é a de que "a rápida modernização (definida como mobilização social justamente com desenvolvimento econômico) não leva ao desenvolvimento, senão a decadência política. O argumento segue três passos: a) se a mobilização social é mais rápida do que o desenvolvimento econômico tem-se frustração social; b) se o desenvolvimento econômico é maior que as oportunidades de mobilidade social ascendente, tem-se crescente participação política; c) se a participação política excede o permitido pelo grau de institucionalização política, tem-se a instabilidade"[5]

Tem também editado recentemente no Brasil o livro "A Terceira Onda - A Democratização no Final do Século", onde o autor trata de questões relacionadas com a redemocratização de vários países[6].

Assim, diversos temas são tratados cientificamente e na forma de paradigmas das ciências sociais por Hungtintton já na década de 60. Isso apenas para exemplificar a amplitude da sua obra.

Para o autor existem basicamente 7 grandes civilizações em que os povos da terra (e ele não entre nesse conceito também) se incluiriam. São elas: a ocidental, a confuciana, a japonesa, a islâmica, a hindu, a eslavo-ortodoxa e latino-americana. Aponta a perspectiva que a africana também venha a se converter em uma civilização.

Interessante notar que a latino-americana, apesar de colocada como civilização com identidade própria, se aproxima muito dos padrões americanos, sendo que todas as outras cinco podem ser consideradas orientais.

Não se entra em detalhes, mas sabe-se que internamente no Japão a religião que já foi um dia de Estado e é francamente majoritária é a xintoísta e em segundo plano a budista, que mantém a sua forte influência ainda em muitos países da Ásia. Na Índia é a mesma coisa, sendo que nesse país a religião hindu é majoritária. O que o autor chama de civilização eslavo-ortodoxa, sofre forte influência das religiões ortodoxas em geral, as que surgiram com as primeiras divisões da Igreja a partir de Bizâncio e não seguem a orientação do Papa.

Tais religiões de um modo gerais mantêm algumas contradições com o ocidente. Interessante notar que o autor não menciona em nenhum momento a possível civilização cristã. Muito provavelmente porque deve ter a opinião que essa religião (e todas as suas ramificações internas) acaba por ser absorvida e faz o "jogo" do ocidente.

O autor enumera 5 características e fundamentações pelas quais em sua opinião haverá um choque entre as civilizações. São elas:

1º) são imensas e reais as diferenças entre as civilizações; entende que as diferenças entre civilizações acabam sendo maiores do que as ideologias (e, portanto até de classes sociais, conceito ao qual ele não trabalha);

2º) há uma gradativa diminuição do distanciamento entre as pessoas e consequentemente aumenta muito as interações entre as pessoas;

3º) o crescente avanço das mudanças sociais e econômicas isolam as pessoas das suas identidades locais de longa permanência; isso faz com que as religiões de modo geral acabem por preencher esse vazio; fala em uma volta das religiões com muita força;

4º) com o crescimento da importância política, econômica e militar do ocidente, cresce também o sentimento interno de consciência de suas próprias civilizações em outros países, em especial na Ásia (fala em desocidentalização de muitos países; fala que elite se afasta do ocidente e algumas se indignam, criando paradoxos com as populações; tem-se assim a "asiatização" do Japão, a "hinduização" da Índia, a "russificação" da Rússia, a "re-islamização" do Oriente Médio);

5º) a facilidade com que ocorrem as mudanças culturais, diferentemente das mudanças políticas e econômicas, mais difíceis de ocorrer; fala o autor que em certo momento da história, quando era mais forte o conflito ideológico, as pessoas perguntavam "de que lado você está", quando hoje elas perguntam "o que você é?"[7].

Dessa forma não é difícil imaginar e até prever que estaria crescendo em todo o mundo um sentimento antiocidental, pois do "lado de lá", as pessoas sentem que o ocidente estaria contra todos.

Por muitas passagens do seu texto, Hungtintton demonstra grande domínio e conhecimento de geo-política internacional, em especial o capítulo intitulado "The Fault Lines Between Civilization"[8], onde trata do que ultimamente se tem visto na literatura sociológica e política, que se convencionou chamar de "fronteiras móveis, opostas às fronteiras rígidas"[9].

Por várias passagens do seu texto, a ênfase acaba sendo para a cultura, em detrimento das divergências que ocorreriam entre as pessoas do ponto de vista econômico e mesmo político.

O autor aborda um conceito relativamente novo, mais bem definido: os países fragmentados. Estes seriam aqueles cujas elites acabam por levá-los em direção exatamente oposta a que a sua história e sua tradição vinham definindo. Para exemplificar esse conceito, ele menciona os três principais países nessas condições hoje no mundo: o México, a Rússia e a Turquia.

Esses países, de fato, vivem hoje complexos dilemas e paradoxos. Se de um lado sua economia e muito de sua cultura foram quase que totalmente ocidentalizadas, por outro, cresce entre seus povos um sentimento de "volta às raízes", um sentimento antiamericano, antiocidente, que faz com que até mesmo boa parte dessas mesmas elites, comecem a acenar para uma volta à civilização anterior.

De fato, a Turquia, desde a sua ocidentalização com Ata Turk. Em 1919, procedeu a tantas modificações na vida do país, que até mesmo o seu alfabeto passou a utilizar as letras latinas; os movimentos fundamentalistas foram amordaçados; o Estado separou-se da religião; os costumes se ocidentalizaram (usam-se mais ternos do que roupas islâmicas) etc. Apesar de tudo isso, muito dificilmente a Turquia será admitida na Comunidade Econômica Européia[10].

O México, como o próprio autor constata e a vida confirma, "deu as costas para a América Latina" e voltou para os Estados Unidos e o Canadá. Tanto que é signatário do NAFTA (North American Free Tract Agreement), onde se criou um grande mercado para os produtos americanos (o México entra com o consumo).

Por fim, a Rússia. Desde o fim da URSS, em dezembro de 90, as contradições se avolumam. Não bastassem os constantes movimentos nacionalistas (ainda que de direita), a Rússia vem sendo sacudida por rebeliões que visam a criação de pequenos países em seu território. O seu presidente Bóris Yelstin sonha em introduzir o país no G7, passando a ser o seu oitavo membro. Mas não há sinais do ocidente que seja admitido.

Na eleição parlamentar no final de 95, o eleitorado deu vitória aos integrantes do ex-Partido Comunista, ainda que estes não tenham conseguido a maioria na Duma (com a aliança com outros Partidos de esquerda e com o Partido Agrário, essa maioria foi conquista, tendo sido eleito um membro do Partido para presidir a Duma de Estado).

Isso pode ser interpretado, de forma clara, como uma demonstração por parte da população em geral com os rumos do governo atual, da sua política de implantação do ajuste internacional dentro da "nova" ordem ditada pelo Washington Consensus. Essa vitória deve ser interpretada pelos analistas ocidentais como um claro alerta para mudanças de rumo.

O professor Hungtintton é um grande intelectual e um bom observador da cena política internacional. Mas é um intelectual das elites, das classes dominantes, da burguesia internacional. Sua análise dos fatos políticos não leva em conta conceitos de sociologia e política, que se relacionam com as classes sociais. Ou seja, mesmo dentre as grandes civilizações, quais seriam as classes sociais beneficiárias se ocorressem as modificações que se avizinham?

Como já se disse, o autor passa ao longo de outras questões, em especial a de ideologia. Tudo parece destituído de pontos de vista e as idéias que se esboçam seriam somente as religiosas, como se essas fossem só propriamente religiosas e não tivessem embutidas dentro de si valores e idéias impostas pelas classes dominantes.

Seu compromisso com as elites americanas é tão claro no texto, que o professor Hungtintton dá "conselhos" para que as suas idéias e análises fatalistas e catastróficas não se verifiquem. Para que tudo o que ele previu não aconteça é preciso que:

  1. a) que o Ocidente incorpore sociedades já ocidentalizadas da Europa Oriental e da América Latina (sic);
  1. b) promover e ampliar as relações de cooperação com a Rússia e o Japão;
  1. c) evitar a escalada de conflitos locais, como já vem ocorrendo, para que estes não se transformem em conflitos entre civilizações;
  1. d) procurar restringir a corrida armamentista entre os países da civilização confuciana e os árabes-muçulmanos;
  1. e) manter a estrutura militar do Ocidente, procurando inclusive ampliá-la no Extremo Oriente e no Sudoeste da Ásia (grifos nossos);
  1. f) procurar explorar as contradições entre os países confucianos e islâmicos;
  1. g) apoiar grupos de outras civilizações não-ocidentais que possam ter identidades de pontos de vista com o Ocidente;
  1. h) que o Ocidente continue influenciando fortemente as entidades e instituições internacionais que já defendem os seus interesses;
  1. i) garantir que os Estados não-ocidentais ingressem nessas mesmas instituições sob o controle do Ocidente.

É pouco provável que, mesmo que os Estados Unidos acatem essas "recomendações" de seu "conselheiro", que os rumos das coisas serão alterados. Os valores morais, a economia, a civilização como um todo do Ocidente esta se desagregando. E de forma acelerada. Os dados, estudos e pesquisas sérias estão aí para provar[11].

De fato, após o fim da chamada “guerra fria”, especialmente com a queda do Muro de Berlim em 1989, parece que o planeta começou a vier uma “guerra quente”, pois começaram a pipocar diversos pequenos conflitos étnicos em várias partes do mundo.

Os maiores conflitos da atualidade são os que hoje ocorrem na África, uma espécie de continente em desagregação, em especial na chamada África Central e Setentrional. São guerras tribais e étnicas no Zaire, Angola, Moçambique, Etiópia, Eritréia. Há outros que estão mais contidos e, aparentemente mediados, como o da Bósnia-Herzegovina.

Há problemas com o povo armênio fora da Armênia (os que moram na Síria e Turquia); há conflitos étnicos com o povo curdo, que não tem território reconhecido e é perseguido pela Turquia, sofre certas sanções do Iraque e do Irã. Luta-se pela independência do Timor-Leste, que inclusive recentemente, duas das suas lideranças receberam prêmios nobéis da paz.

Dessa forma, vê-se um mundo em conflitos. Alguns maiores e outros menores. São conflitos regionalizados. Pode-se dizer que sejam conflitos que não expressam mais a bipolaridade do mundo, entre URSS e os EUA, mas que refletem os problemas relacionados com a tentativa de dominação total e completa por uma das partes do planeta, que quer impor a sua vontade e as suas concepções ao restante do mundo. Isso é a chamada “nova ordem mundial”, onde os Estados Unidos querem liderar a competição. Mas aparecem os problemas e alguns deles muito graves.

Aos teóricos que previram o fim da história[12], que fiquem atentos aguardando novidades e grandes mudanças que se avizinham. Elas virão. O próprio sistema neoliberal globalizante, adotado por quase uma centena e meia de países na terra, dá sinais claros e inequívocos de esgotamento, pois leva a uma centralização de poder nas mãos de poucos e a uma exclusão da grande maioria das pessoas. Por isso, nem a história acabou e nem o capitalismo venceu.

 

[1] New Haven, Yale University Press, citado por REIS, Fábio Vanderley, in "Governabilidade, Instituições e Partidos", Revista "Novos Estudos", do CEBRAP, n.º 41, março de 1995, pág 40-59.

[2] Esse livro foi publicado no Brasil com o título "A Ordem Política nas Sociedades em Mudança", editada em 1975 (edição esgotada) pela Forense-Universitária e pela Edusp, SP, traduzida pelo jornalista Pinheiro de Lemos, 496 pg.

[3] Enciclopédia Mirador Internacional, Editora Encyclopaedia Brittanica do Brasil, SP/RJ, Vol. 14, pag 7.654, verbete "Militarismo", edição de 1993.

[4] Op. cit., Vol. 7, pág 3.258, verbete Desenvolvimento, de autoria, entre outros do Professor Raimundo Faoro.

[5] Op. cit., Vol. 7, pág 3.259.

[6] Tradução de Sérgio Gomes de Paula, Editora Ática, SP, 1994.

[7] Op. cit. Pág 27.

[8] Op. cit. entre as pág 29 e até parte da 35.

[9] Ver artigos da Revista Margem, da PUC de São Paulo, especial sobre o tema da globalização, já citado, do prof. Paulo-Edgard Resende, que trata desse assunto.

[10] Ainda para efeito de registro e possível comprovação de algumas das teorias do professor Hungtintton, saiu vencedor nas eleições gerais da Turquia em final de 95 o Partido Islâmico, fundamentalista radical, que vem colocando em cheque o governo pró-ocidental do país.

[11] Ver excelente artigo do prof. Paul Kennedy, intitulado "O Futuro dos Estados Unidos", publicado originalmente em 4 de março de 93, na revista The New York Review of Books e no Brasil na revista Política Externa Vol. 2, n.º 2, de setembro de 93, pág 26-53 (sem mencionar tradutor).

[12] O mais famoso de todos eles é sem dúvida Francis Fukuyama, que tem no Brasil, editado pela Rocco, sua mais famosa obra: "O Fim da História e o último Homem", RJ, 1992. Tal cidadão é funcionário da Rand Corporation nos EUA e escreveu o livro sob encomenda das elites neoliberais.