Já sabemos que a mídia não divulga assuntos que não interessa aos seus donos, aos seus proprietários aos que contrarie os interesses de seus anunciantes. As lutas populares, as revoluções proletárias, os levantes e a resistência dos palestinos e iraquianos são, quando divulgados, distorcidos ao máximo.
O caso que vamos relatar aqui saiu discretamente na mídia em meados de março. Como mortes de palestinos acabou sendo banalizada, quase ninguém mais nota ou liga para esse assunto, o que é lamentável. No entanto, este caso foi mais rumoroso, pelo fato da vítima não ser palestina, mas de origem judaica.
Estamos falando da jovem americana Rachel Corrie, estudante da Faculdade Estadual Evergreen em Olympia, em Washington, nos Estados Unidos. Rachel, de provável ascendência judaica, como outros tantos milhares de jovens de todo o mundo, abraçava a causa pacifista, defendendo a justiça, a liberdade e a paz no Oriente Médio. Militava numa entidade denominada Movimento Internacional de Solidariedade aos Palestinos. Era alegre, lutadora, feliz e procurava dar a sua modesta contribuição para vivermos em um mundo melhor. Ativista consciente desde a sua mocidade.
Em março deste ano, Rachel decidira passar da teoria para a prática. Resolvera partir para ações concretas em defesa da paz. Juntou-se aos palestinos na cidade de Rafah, na faixa de Gaza. Lá estava morando na casa de um médico palestino. Sua luta consistia em tentar parar os chamados “bulldozers”, que são os tratores americanos da empresa Caterpilar, que são usados para demolir as casas de palestinos acusados de participarem da luta pela libertação da sua pátria, chamados pelos israelenses e pela mídia de “terroristas”. Mas não só deles. Também de seus pais, parentes etc.
Rachel costumava escrever mensagens para seus amigos em vários países do mundo, onde dizia “os israelenses derrubam as casas dos palestinos mesmo com pessoas ainda dentro delas e não tem respeito por nada e por ninguém”. Rachel estava indignada. Sentia-se útil na sua jovem vida de 23 anos, nessa campanha.
No dia 14 de março, Rachel foi fotografada pela última vez com vida pelo repórter da Associated Press, Lorenzo Scaraggi, junto com outros integrantes de seu movimento, ostentando uma faixa onde se podia ler: “Exército de Israel: parem de atirar nas crianças!”. Foi um dos últimos registros documentados que se tem de Rachel. O último, seria de seu assassinato.
No dia 16 de março, Rachel saiu em defesa dos palestinos pela última vez. Junto com outros amigos tentou parar um dos tratores imensos de esteira, usados na terraplanagem, que removem grandes volumes de terra, opondo-se às demolições. Segundo seu amigo, Joseph Smith, ela postou-se na trajetória do trator, pilotado por um militar do exército de Israel.
O condutor do trator, mesmo avistando claramente Rachel (como todos poderão ver nas fotos desta matéria), não parou o seu veículo. Tratou de passar por cima de Rachel. E o fez por duas vezes. Tratorou seu pequeno corpo na ida e na volta, esmagando-o completamente. Outro colega de Rachel, que com ela estava no protesto, Nicholas Dure, viu quando o episódio ocorreu e ainda tentou prestar socorro à jovem Rachel.
Não havia mais nada a fazer. Os colegas e vários palestinos ainda tentaram levar Rachel ao Hospital Najar, na cidade mais próxima, aonde Rachel já chegou morta, esmagada. As autoridades israelenses ainda tentaram dar diversas versões para os episódios, todos eles desmentidos pela eloqüências das fotos e das imagens divulgadas pelos amigos de Rachel, que documentaram tudo. A jovem foi morta a sangue frio e de modo mais bárbaro possível. O enterro de Rachel mobilizou a comunidade palestina local. Seu caixão foi carregado por uma imensa multidão, composta por jovens palestinos, médicos e enfermeiras que tentaram salva-la, até crianças participaram. Uma grande emoção ocorreu na cidade de Rafah.
O porta-voz do exército israelense, capitão Jacob Dallal, afirmou que a morte foi um mero acidente. Por outro lado, o porta-voz o departamento de Estado dos Estados Unidos, Lou Finter, disse que o governo americano pediu ao Estado de Israel uma investigação profunda e completa sobre o assunto. Apenas para inglês ver, pois o mesmo governo que pede a investigação de uma morte de uma cidadã americana é o que dá total sustentação política a Ariel Sharon, primeiro ministro de Israel.
Mas não é só Rachel que morre todos os dias na Palestina. Jovens e velhos na região morrem esmagados todos os dias em suas casas, tentando defender os seus lares, as suas terras, onde diariamente são expulsos pelo exército de ocupação sionista. Até quando isso vai durar? Até quando as pessoas e as potências poderão fechar os seus olhos a todos esses episódios? Em nome de quem e de que interesses esses crimes bárbaros são cometidos e ao mesmo tempo acobertados?[1]
Os pais de Rachel, Cindy e Craig e seus irmãos Cris e Sarah corrie, enviaram uma carta ao povo palestino, particularmente ao povo de Gaza, datada do último dia 23 de abril, ao qual publicamos nesta matéria. Há relatos de que dezenas de meninas que nascem que possam a se chamar Rachel, em uma homenagem a Rachel Corrie, ainda que este nome seja de origem judaica e não islâmico. Diversas ruas na região passaram a se chamar Rachel Corrie. Na cidade de Rafah, onde ela morreu, o Centro Cultural da Juventude e da Infância bem como o Centro de Valorização da Mulher, passaram a se chamar também Rachel Corrie. Existe uma página na internet em memória de Rachel que pode ser visitadas pelos internautas cujo endereço é: http://salvatorereda.sevcom.com (demora um pouco para abrir, e só poderá visualizar quem tiver em seu micro o programa Flash instalado). É uma página muito bonita, em inglês, com dezenas de fotos que falam por si só. Vale a pena ser visitada.
Que a morte da jovem e combativa Rachel não tenha sido em vão e que seja sempre lembrada como uma mártir de um povo que luta pelos seus direitos e só quer viver em paz.
Saudações a todos nossos amigos nos territórios Ocupados. Nós, pais irmã e irmão de Rachel Corrie, queremos agradecê-los por tudo o que fizeram por Rachel enquanto ela estava trabalhando em Rafah, e pelo que vocês fizeram para honrar sua memória desde que ela foi morta em 16 de março. Nós compreendemos que vocês a estarão rememorando especialmente no quadragésimo aniversário de sua morte. Saibam que estaremos todos pensando em vocês.
Nós estamos muito agradecidos a todos vocês que se tornaram amigos de Rachel e a receberam em seus lares e dividiram o seu chá e comida com ela.
Ela nos escreveu sobre vocês e sobre suas famílias maravilhosas. Ela admirava como vocês lidavam uns com os outros ainda que lutando contra as crueldades da ocupação. Escrevendo-nos sobre vocês, Rachel contou-nos, “Nunca estou o suficientemente assombrada com a força deles em defender tão alto grau de humanidade, generosidade, e o tempo em família contra os incríveis horrores que ocorrem em suas vidas e contra a constante presença da morte... Estou também descobrindo uma força de habilidade básica para os seres humanos continuarem humanos a despeito das circunstâncias...Eu diria que a palavra certa é dignidade.”
Estamos agradecidos a todos vocês que cuidaram da Rachel quando ela morreu e depois. Nós sempre lembraremos o respeito e amor com o qual ela foi tratada em vida e também na morte pela população de Gaza ocupada.
Estamos agradecidos a todos vocês que tem honrado a memória de Rachel durante estas últimas semanas. Eleva nosso espírito saber do Centro Cultural da Juventude e da Infância Rachel Corrie em Rafah e do Centro de Valorização da Mulher Rachel Corrie. Soubemos que há agora bebês recém nascidos chamados Rachel e ruas que levam o seu nome, também. Não podemos encontrar palavras adequadas para expressar o quanto estas coisas significam para nós. Obrigado a vocês pelos muitos meios que encontraram para honrar nossa filha e irmã.
Rachel nos escreveu dizendo que ir a Rafah foi uma das melhores coisas que ela jamais fez em sua vida. Nos contou que ficaria em Rafah muito mais tempo do que havia planejado inicialmente. Ela assistiu a outro voluntário do ISM dizer adeus às famílias com as quais ela havia convivido, e Rachel disse imaginar o quanto seria difícil para ela dizer adeus a elas um dia. Ela sonhou fazer conexões entre Rafah e sua cidade nos Estados Unidos, Olympia, Washington. Ela havia planejado fazer Rafah e Olympia cidades irmãs. Ela foi a sua antiga escola primária em Olympia encorajar as crianças dali a escreverem cartas às crianças de Rafah. Estava planejando ajudar as mulheres em Rafah que fazem artesanato a venderem seus artefatos em lojas de Olympia. Rachel precisa que as vozes de vocês sejam ouvidas nos Estados Unidos. Se tivesse viva, Rachel teria trabalhado para que todas essas coisas acontecessem. Agora queremos que vocês saibam que muitas pessoas nos Estados Unidos estão trabalhando duro para que estes sonhos de Rachel se tornem realidade. Os sonhos não foram esquecidos. Rachel não foi esquecida. E o sofrimento de vocês não foi esquecido.
Nossa família quer muito ir a Jafah. Pretendemos fazer isso tão logo seja possível. Quando formos a Jafah, queremos encontrar as crianças que ensinaram palavras árabes a Rachel, a avó que cuidou da saúde de Rachel, e as famílias dividiram com ela sua refeição e seu chá. Esperamos visitar o Centro Cultural da Juventude e da Criança Rachel Corrie, em Jafah, e quem sabe conhecer um bebê recém nascido chamada Rachel. Estamos ansiosos para olhar nos olhos de vocês e sentir vocês olhando nos nossos olhos para relembrarmos Rachel juntos.
Queremos que vocês saibam que cada dia aqui nos Estados Unidos estamos fazendo tudo o que podemos para que os Americanos não participem do sofrimento de vocês. Continuaremos a trabalhar aqui para uma solução justa e pacífica para esse conflito que tem causado muita s perdas e muita dor para cada um de vocês, e agora para nós. Sabemos que Rachel estará ligada para sempre ao povo Palestino. Ela trouxe a história de vocês para nós, e agora vocês estarão para sempre em nossos corações.
Sinceramente,
Cindy, Craig, Chris e Sarah Corrie, a família de Rachel.
23 de abril de 2003
(Tradução: Ciro Biggi – Ação Brasileira em Memória de Rachel)
* Sociólogo e professor da Unimep. Colunista do Vermelho às quintas-feiras, onde escreve sobre Oriente Médio.
[1] Parte deste texto sobre Rachel só pode ser escrito a partir de uma apresentação que recebi de um português, de nome Carlos Coimbra, que fiz também circular na internet para ampliar a sua repercussão. Na página do Exército Zapatista, consegui mais algumas fotos aqui mostradas, bem como a carta da família de Rachel enviada aos palestinos, em agradecimento ao apoio que deram à sua jovem Rachel.